terça-feira, 27 de dezembro de 2011

ARMAS?: BANDIDOS PODEM, CIDADÃOS, NÃO!

O filósofo brasileiro Denis Rosenfield é um defensor da liberdade individual do cidadão e opositor das manobras do Governo (sempre bem paramentadas de propagandas e de estatísticas maquiadas) para tolher essa liberdade, como se a nação fosse composta somente de incapazes, velando sua (do Governo) incapacidade ou incompetência em resolver problemas sociais comuns em todo e qualquer país, como a violência. O artigo que passo a transcrever trata sobre a campanha de desarmamento da população, enquanto os bandidos, que fomentam a violência, se mantêm armados até os dentes, sem que o Estado tenha qualquer condição de proteger seus cidadãos. Isso é justo?


A VERDADE FICA AO LONGE
Denis Lerrer Rosenfield
Publicado em O GLOBO de 19.12.2011


A recente publicação do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2011 suscita uma série de questões quanto ao modo como a criminalidade tem sido enfrentada e abordada no Brasil. A campanha dita do desarmamento tem sido conduzida como se fosse ela a causa principal da redução da violência no País. Basta qualquer índice mostrar uma diminuição de homicídios, por exemplo, para que alguém já saia dizendo que isso se deve a uma campanha bem-sucedida e em curso de desarmamento.

Os fatos frequentemente nem contam, pois parece que tudo já está provado antes mesmo que os dados sejam apresentados. Não se trata de hipóteses de trabalho que deveriam ser verificadas, mas de reafirmações de uma crença de antemão válida. É como se dissessem: se a realidade não corresponde aos fatos, pior para a realidade. A fé segue verdadeira!

O que tem sido alardeado é que a campanha do desarmamento, levada a cabo nos últimos anos, está tendo êxito e isso se estaria traduzindo em diminuição da violência. Deixando, pelo momento, de lado a relação direta pretendida, vejamos os dados estatísticos apresentados pelo próprio Ministério da Justiça.
Tomemos uma série ampla, de dez anos, entre 2000 e 2010, para verificar se houve ou não, de fato, uma diminuição dos homicídios. Seria de esperar uma redução da criminalidade, considerando um desarmamento alardeado como bem-sucedido, realizado com amplas campanhas. Ora, nesses dez anos o número de homicídios cresceu de 45.360 para 49.932, ou seja, um aumento de 10,1%. Os dados estatísticos não comprovariam, portanto, que o recolhimento das armas de cidadãos - não criminosos e não bandidos, enfatizemos - se tenha traduzido na diminuição de homicídios. Um espírito aberto se perguntaria se não há outras causas em jogo, dentre as quais o desarmamento do cidadão de bem não seria a principal.

Se tomarmos as 27 unidades da Federação, 20 apresentaram aumento de crimes na década e apenas 7, redução. Ou seja, também no cômputo por Estados houve aumento da criminalidade, em que pese, reiteremos, o desarmamento dos cidadãos de bem, que procuram apenas a autodefesa, num espírito de livre escolha. Mais precisamente, poderíamos acrescentar que os bandidos não foram desarmados. Eles não se apresentam voluntariamente para entregar suas armas!

Ademais, acrescentemos que o comércio civil de armas, hoje, no Brasil é praticamente inexistente. As exigências para a compra são tão grandes e dispendiosas, além de extremamente demoradas, que esse mercado desapareceu. Bandidos não compram armas em lojas especializadas. Pior ainda, os números mostram que eles continuam armados e, muitas vezes, com armamentos pesados de restrito uso militar.

Entre os números apresentados de redução da violência, destacam-se os Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. Podemos, sensatamente, nos perguntar se foi o "desarmamento" que produziu essa diminuição. Outras hipóteses poderiam ser aventadas, dentro de um espírito científico, não fechado por uma crença preestabelecida.

No Fórum de Segurança Pública consta uma carta assinada pela Secretaria da Segurança Pública de São Paulo contestando os dados do Anuário indicando uma diminuição, nesse Estado, dos recursos destinados ao setor. Diz textualmente a carta: "O aumento dos investimentos do Governo do Estado na área de segurança é uma das principais causas da redução dos níveis de criminalidade e violência em São Paulo. Desde 1999, o Estado reduziu em 73% o número de homicídios dolosos". Acrescenta ainda a carta que em 2005 o montante destinado à segurança foi de R$ 7,01 bilhões, tendo subido em 2010 para R$ 10,78 bilhões.

Observe-se, também, que a política de segurança pública no Estado de São Paulo tem sido de combate direto à criminalidade, enfrentamento com bandidos se necessário, num espírito de tolerância zero. Os serviços de inteligência tiveram uma melhora significativa. Em 2009, 60 mil pistolas foram adquiridas, assim como 6 helicópteros. Um espírito isento poderia apresentar esses dados como razões da diminuição da violência.

No caso do Rio de Janeiro, a queda apresentada pode ser atribuída, em boa medida, a uma nova política de segurança pública, com combate direto à criminalidade via ocupação de favelas e estabelecimento de UPPs, beneficiando um enorme grupo de comunidades. A tolerância com criminalidade manifestamente diminuiu, o que se teria traduzido em redução dos homicídios.

Poderíamos listar outras causas para o aumento da criminalidade, como a epidemia do crack e o narcotráfico em geral, que têm tido um crescimento substantivo no País. E o narcotráfico, manifestamente, não pode ser combatido com o desarmamento da população civil. A confusão seria total!

O nó da questão reside na formação da opinião pública. Os formadores de opinião pró-desarmamento dos cidadãos de bem e os agentes públicos que lhes dão respaldo tornaram a sua campanha uma questão de ativismo político, recusando quaisquer opiniões ponderadas que contrariem suas crenças. Pesquisas são dirigidas por orientações ideológicas e vendidas à opinião pública como o resultado de todo um esforço científico. Mas antes de qualquer conclusão científica se estabelece um consenso do ponto de vista da opinião pública, toda posição contrária vindo a ser considerada uma espécie de anátema, coisa de "homens da bala".

O problema que se coloca consiste em levantar esse véu público, o da ideologia, de tal maneira que causas e efeitos possam ser estabelecidos, e não quaisquer nexos associativos sem fundamento. Com orientações ideológicas não teremos certamente uma redução da criminalidade. Hipóteses devem ser seriamente testadas. Se a crença toma o seu lugar, os prejuízos são evidentes. A verdade fica ao longe.

Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia da UFRGS

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

MINDWALK: A MENTE A CAMINHO DO OUTRO LADO


Enquanto selecionava o material diretamente do livro “Sabedoria Incomum”, de Fritjof Capra, para o segundo capítulo da série de artigos intitulada “A Crise do Racionalismo Ocidental”, fui surpreendido com um artigo sobre o filme “Mindwalk”, do diretor Bernt Capra, irmão de Fritjof, e resolvi transcrevê-lo para cá, para dar maior volume e respaldo ao que venho escrevendo. Ele não será considerado um capítulo da série, mas um texto de apoio ao que estamos investigando juntos, no tocante à essência do tema.
O texto originário foi publicado no Mercado Ético, mas você pode saber mais sobre seu autor, acessando www.arlindenor.blogger.com.br

PARA REPENSAR CIÊNCIA E POLÍTICA
Por Arlindenor Pedro

O filme Mindwalk, do diretor Bernt Capra — baseado em O Ponto de Mutação, livro de seu irmão, o físico austríaco Fritjof Capra — é uma excelente oportunidade para quem deseja refletir um pouco mais sobre o mundo em que vivemos, e qual a melhor forma de interpretá-lo.

Quem conhece as ideias de Capra conhece seu modo interessante de perceber o mundo e explicar a realidade. Trata-se de um pensamento holístico, que leva ao entendimento de que somos parte de uma teia universal, totalmente interligada, de inseparáveis relações. Resumidamente, a chamada “Visão Sistêmica”, proposta por Capra, opõe-se à ideia de que, para entender o todo, é preciso fragmentá-lo, indo do particular ao geral. Os sistemas seriam totalidades integradas, e, por isso, temos de pensar em termos de redes, devendo sempre ver as conexões entre as coisas. Deveríamos, pois, pensar em processos, e não em estruturas.

A base de tal forma de pensamento estaria na física subatômica, ou o que conhecemos como física quântica. É a área da física que tomou desenvolvimento com as experiências e descobertas do início do século XX, principalmente a partir de Marx Planck e sua teoria quântica de 1910. Esquecida durante certo tempo, foi retomada por outras gerações, tais como Werner Heisenberg, polêmico físico-chefe do programa nuclear alemão da II guerra, com sua “Teoria da Incerteza”; o dinamarquês Niels Borh; Otto Hanh, um dos descobridores da fissão nuclear; Erneth Rutherford, descobridor do núcleo do átomo e todos aqueles que, de alguma forma, contrapuseram-se aos princípios da inércia newtoniana.

O Ponto de Mutação, lançado por Capra em 1962, representa um marco no desenvolvimento desta nova forma de olhar mundo, precursora da linha de pensamento denominada Nova Era. Está afinado com as teorias ecológicas do presente século, como a Teoria de Gaia, do inglês James Lovelock. O filme é uma obra sobre estas ideias, Desenvolve-se ao longo de um roteiro em que os personagens se apresentam com a clara finalidade de expor as teorias de Capra, numa criação cinematográfica que nos lembra os filmes didáticos de Rossellini, na sua fase pós-neo-realismo.

O filme tem Liv Ullmann (a grande atriz dos filmes de Ingmar Bergman) no elenco, como a cientista Sonia Hoffmann. A personagem é um tipo de alter ego de Fritjof Capra. Os dois outros personagens principais são o político americano Jack Edwards, interpretado por Sam Waterston, e o poeta Thomas Harriman, vivido por John Heard.

A atmosfera reflete as grandiosas estruturas góticas do Mont Saint-Michel, abadia medieval situada no lado francês do Canal da Mancha, encravada em um espetacular rochedo, tomado todos os dias pela maré e contramaré, que espraia areais que chegam a 20 quilômetros. Os personagens desenvolvem diálogos longos e densos, acompanhados por uma câmera que alterna suas perguntas e respostas com belos planos-sequências. Acompanhados por musica, procuram vencer suas incompatibilidades e incompreensões com a contemporaneidade reavaliando suas ideias. Sonia, moradora das cercanias, apresenta, então, a visão sistêmica de Capra aos visitantes do rochedo, Jack e a Thomas, e os três discutem, durante uma tarde, política, ecologia, tecnologia e arte.
No livro, Fritjjov Capra constata que a crise que marca a sociedade contemporânea deriva do esgotamento de três grandes elementos que sustentaram a nossa civilização. O esgotamento iminente de todas as fontes não renováveis de energia – petróleo, gás, carvão – e mesmo da água obriga o redesenhar dos mapas estratégicos e induz a guerras por controle territorial. O declínio do sistema patriarcal, que foi a base da construção das sociedades humanas desde a sua fixação, lança a sociedade numa crise de valores e costumes. Finalmente, há a falência dos preceitos oriundos do iluminismo, notadamente da física cartesiana-newtoniana, que não mais podem explicar os fenômenos físicos. Torna-se necessário, pois, um novo olhar sobre a realidade, capaz de gerar fórmulas que retirem a humanidade desse impasse.

E esse olhar tem que ser inovador, fora das concepções em vigor na sociedade contemporânea. Como ele diz: uma mudança de paradigmas!

No filme, o roteiro segue por esses caminhos. Em uma cena de forte valor simbólico, os três personagens dirigem-se a um recinto do castelo onde está exposto um relógio medieval. Sonia usa-o como exemplo, para criticar a visão mecanicista da compreensão do todo por meio de sua fragmentação em unidades básicas. Dirigindo-se a Jack, afirma: “Perdoem-me, mas vocês, políticos, dificultam as coisas. As ideias da maioria de vocês, de direita ou de esquerda, parecem-me antiquadas e mecânicas como um relógio. É como se a natureza funcionasse feito um relógio. Vocês a desmontam, reduzem-na a um monte de peças simples e fáceis de entender, analisam-nas e, aí, pensam que entendem o todo.

Sonia está se referindo ao pensamento de Descartes, à sua visão mecanicista da vida, vendo o universo como um imenso relógio, que precisa apenas, para funcionar, seguir as leis racionais de seu projeto original. Caberia à sociedade, portanto, conhecê-las, interpretá-las e aplicá-las, num eterno processo mecânico. Ela afirma que esse pensamento tornou-se predominante e moldou uma sociedade extremamente racional, onde o todo não é levado em consideração e o que importa é o aqui e o agora. Critica inclusive o Brasil, por sua postura de desmatamento e extermínio das sociedades indígenas e agrícolas.

Tal visão de mundo confronta-se com a vida de Jack, recém-saído da campanha em que postulou a presidência dos Estados Unidos, e em preparativos para uma reeleição ao Senado. Embora sabedor da catástrofe que se avizinha, ele não consegue propor novos caminhos para os americanos, pois isto o levaria a perder seus eleitores. Nova política de saúde, nova forma de alimentação, postura anti-bélica, política radicalmente ecológica são posturas inaceitáveis! Ele sabe que a Utopia, por muito tempo um elemento determinante na prática política, foi afastada como matriz de comportamento e ação dos atores políticos na América e no mundo.

Na realidade, a política, tal como é apresentada hoje, foi tomada pela economia. Ao invés de ser espaço de grandes confrontos de ideias, sujeita-se aos ditames das relações de mercado, e de seus principais protagonistas. Os políticos, por força da lógica desta situação, foram reduzidos a meros produtos, para serem consumidos e descartados. Na outra ponta, também por força desta mesma lógica, ele, como político, vê os cidadãos-eleitores reduzidos à figura de consumidores, que escolhem suas preferências de acordo com o que dita o marketing político: a melhor postura, melhor imagem, apelos emocionais, etc. Desta forma, pouco importa o conteúdo das mensagens e sim a forma como são ditas-transmitidas. O debate passou a ser travado no campo da administração, destacando-se os candidato capazes convencer o eleitor de que são mais capaz para efetuar choques de gestão na máquina pública.

Ao mesmo tempo, Jack sabe que as corporações dominaram o parlamento: as votações invariavelmente se dão em torno dos interesses corporativos, ficando para segundo plano os interesses de segmentos sociais fora desses parâmetros, tais como movimentos de minorias étnicas, em defesa do meio-ambiente, etc. Poder-se-ia dizer, portanto, que a política tornou-se um negócio, sujeito, como tantos outros, às leis do mercado. Para sobreviver na política, o personagem teria que incorporar um personagem, à semelhança dos atores – com a cruel diferença que os atores só o fazem durante a peça, e ele aprisionado por toda a sua vida.

Também Sonia vive o seu problema, desiludida da política e da própria ciência, que tanto ama. Recentemente, viu suas descobertas no campo da energia laser serem desvirtuadas pelas autoridades militares, que as incorporaram ao projeto bélico “Guerra nas Estrelas”. Sentiu na carne que a ciência é dominada pelos interesses econômicos, políticos e militares, a exemplo do que aconteceu com as descobertas na área do átomo que resultaram na bomba de Hiroxima. Como o poeta Thomaz – amargurado em um mundo que cada vez menos lê poesias –, almeja momentos de reflexão. Aproveita o ambiente de Mont Saint-Michel nas poucas horas possíveis, fora do turbilhão de turistas e do comércio que explora o lugar.

Com a maré – que chega rapidamente aos 15 metros – dominando e cercando a abadia, os personagens se despedem e voltam à sua vida real, onde o mercado e as relações cada vez mais reificadas entre os homens os empurrarão para o dia a dia. Os momentos aprazíveis de descobertas que tiveram naquela tarde ficarão cada vez mais distantes.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

A CRISE DO RACIONALISMO OCIDENTAL (Parte II)

PARA ALÉM DAS FRONTEIRAS DA RAZÃO*


O físico austríaco Fritjof Capra é um a espécie de catalisador do pensamento científico, social e filosófico. Autor de dois grandes best-sellers, O Tao da Física e O Ponto de Mutação, Capra encontrou uma relação harmoniosa e, ao mesmo tempo esclarecedora, entre a Física Quântica e a Filosofia Oriental, e viu nisso algo que o ajudou a definir como uma nova visão da realidade, com múltiplas implicações para uma mudança científica e sociocultural. Assim, de uma série de encontros que teve com algumas das mentes mais influentes do século XX, entre as quais, Werner Heisenberg, Jiddu Krishnamurti, Alan Watts e Gregory Bateson, agrupou um extenso e interessantíssimo material, que resultou em outro livro, intitulado Sabedoria Incomum.

Neste segundo capítulo da série “A Crise do Racionalismo Ocidental”, transcrevo o que considerei de mais relevante nos três primeiros capítulos dessa obra que é uma coletânea de perspectivas multidisciplinares fascinantes, que tendem a apontar para novos caminhos em direção à apreensão da realidade à nossa volta, sob os auspícios de mentes brilhantes do século passado e de outras mentes de séculos bem mais distantes que este, que nos é recente, como Krishna, Lao Tsé e Buda.

O autor de “Sabedoria Incomum”, logo no seu Prefácio, diz: “Qualquer pesquisa levada a cabo nas fronteiras do conhecimento tem por característica o fato de não sabermos jamais aonde ela levará; no final, porém, se tudo correr bem em geral podemos discernir uma evolução de nossas idéias e de nosso entendimento”. Capra diz que passou quinze anos, entre as décadas de 1970 e 1980, perseguindo um único tema: a transformação fundamental da visão de mundo que ocorre na ciência e na sociedade, o desdobramento de uma nova visão da realidade e as implicações sociais dessa transformação cultural.

Esse seu interesse, diz ele, despertou quando, ainda estudante de física, aos dezenove anos de idade, leu Física e filosofia de Werner Heisenberg, físico alemão falecido em 1976, laureado com o Nobel de Física e um dos fundadores da Física Quântica. Heisenberg. Os cientistas do início do século XX começaram a explorar a estrutura dos átomos e a natureza dos fenômenos subatômicos, então se depararam com uma estranha e inesperada realidade, que estilhaçou os alicerces da sua visão de mundo e os forçou a pensar de maneira inteiramente nova. A conclusão que tiveram foi a de que o mundo material que então observavam já não se assemelhava a uma máquina, constituída de uma multidão de objetos distintos e, sim, como um todo indivisível – uma rede de relações que incluía o observador humano de modo essencial. Concluíram também que seus conceitos básicos, sua linguagem e todo o seu modo de pensar eram inadequados para a descrição dessa nova realidade. “A cisão cartesiana penetrou fundo na mente humana nos três séculos após Descartes, e levará muito tempo para ser substituída por uma atitude realmente diferente diante do problema da realidade”, afirmou Heisenberg.

É com Alan Watts, que Capra toma conhecimento do zen-budismo e, pouco depois, seu irmão Bernt Capra sugere a ele também a leitura do Bhagavad-Gita (que o próprio Capra declara ser “um dos textos espirituais mais belos e profundos da Índia”). Watts, filósofo britânico, falecido em 1973, também era escritor e estudante de religião comparada, e uma espécie de “intérprete” da Filosofia Oriental para o Ocidente. Tinha muita influência dentro das comunidades hippies e era considerado um herói da contracultura. Apesar de ter feito antes algumas leituras sobre a filosofia e a religião orientais, Capra admite que foi com Watts que veio a conhecer a sua essência.

Em seguida, Capra se aproxima do indiano de formação inglesa, Jiddu Krishnamurti, um pensador original, que rejeitava toda autoridade espiritual e todas as tradições religiosas. Krishnamurti se propusera a tarefa de usar a linguagem e o raciocínio para levar seus ouvintes para além do conteúdo linguístico e da razão, de forma impressionante. O propósito era fazer com que as pessoas envolvidas naquele processo de análise chegassem à nítida sensação de que os problemas existenciais só poderiam ser realmente sanados quando elas fossem capazes d ir além do simples pensamento, da linguagem e do tempo. O pensador indiano chamava isso de “freedom from the known”, ou seja, “libertar-se do conhecido”.

Esse encontro com Krishnamurti abalou o jovem Capra, que acabara de iniciar o que parecia ser uma promissora carreira científica, que, então, viveu um momento de dilema: “Deveria desistir da carreira científica nesse estágio inicial, ou deveria continuá-la, abandonando toda esperança de alcançar a auto-realização espiritual?”. Resolveu então perguntar ao próprio Krishnamurti: “Como posso ser um cientista e ainda assim seguir seu conselho para interromper o pensamento e libertar-me do conhecido?”. Segundo Capra, o pensador indiano respondeu sem pestanejar: “Primeiro você é um ser humano, e depois é um cientista!”. O que significava dizer que antes de tudo o jovem físico deveria se tornar “livre”, e que essa “liberdade” não pode ser ationgida pelo pensamento racional – ela só pode ser atingida pela “meditação” – a compreensão da totalidade da vida, onde cessam todas as formas de fragmentação. Apesar desse conselho, e paradoxalmente, Krishnamurti, ao final do encontro com Capra, não deixou de sentenciar em perfeito francês: “J’adore la science. C’est merveilleux”.

Capra descobrira assim o paralelismo que pode haver entre a física moderna e misticismo oriental. Ele diz que, através do zen-budismo, ficou conhecendo pela primeira vez o papel do paradoxo nas tradições místicas, que os mestres espirituais do Oriente recorrem, com grande habilidade, a enigmas paradoxais para fazer seus discípulos perceberem as limitações da lógica e do uso da razão – o zen se utiliza dos chamados “koans”, que não podem ser resolvidos pelo raciocínio e levam o estudante a interromper o processo do pensamento, tendo assim uma experiência não-verbal da realidade. Declara Capra: “Quando li pela primeira vez a respeito do método dos koans no treinamento zen, senti algo estranhamente familiar. Eu passara muitos anos estudando outro tipo de paradoxo que parecia desempenhar papel semelhante no treinamento dos físicos. Havia diferenças, é claro”. Essas reflexões a respeito desses paradoxos o levariam novamente a declarar, mais adiante: “Tempos depois, também vim a compreender porque os físicos quânticos e os místicos orientais depararam com problemas semelhantes e passaram por experiências semelhantes. Sempre que a natureza essencial das coisas é analisada pelo intelecto, ela parecerá absurda ou paradoxal. Isso foi sempre reconhecido pelos místicos, mas só muito recentemente tornou-se um problema para a ciência. Durante séculos, os fenômenos estudados pela ciência faziam parte do mundo cotidiano dos cientistas e, portanto, pertenciam ao domínio da sua experiência sensorial. Como as imagens e conceitos da linguagem que usavam provinham exatamente dessa experiência dos sentidos, eles eram suficientes e adequados para descrever os fenômenos naturais”.

Capra diz que os físicos nucleares proporcionaram aos demais cientistas os primeiros vislumbres da natureza essencial das coisas, passaram a lidar com experiências não- sensoriais da realidade, exatamente como já faziam os místicos orientais, e dessa forma tiveram de enfrentar os aspectos paradoxais dessas experiências. O próprio Capra fala de sua experiência “mística” que o levou a escrever “O Tao da Física”. Suas palavras são as seguintes:

“Eu estava na praia e observava o movimento das ondas, sentindo ao mesmo tempo o ritmo da respiração. Nesse momento, de súbito, apercebi-me intensamente do ambiente que me cercava: este se me afigurava como se participasse de uma gigantesca dança cósmica. Como físico, eu sabia que a areia, as rochas, a água e o ar a meu redor eram feitos de moléculas e átomos em vibração, que consistiam de partículas. Sabia também que a atmosfera da Terra era constantemente bombardeada por chuvas de ‘raios cósmicos’, partículas de alta energia que sofriam múltiplas colisões à medidad que penetrava na atmosfera. [...] Sentado na praia, senti que minhas experiências anteriores adquiriam vida. [...] ‘Vi’ os átomos dos elementos – bem como aqueles pertencentes ao meu próprio corpo – participarem dessa dança cósmica de energia. Senti o seu ritmo e ‘ouvi’ o seu som. Nesse momento compreendi que se tratava da Dança de Xiva, o deus dos dançarinos, adorado pelos hindus”.

Algum tempo depois dessa experiência incomum, Fritjof Capra, ouviu do estudioso e sábio indiano Phiroz Mehta a seguinte observação: “Pense em seu próprio corpo; quando você está com saúde, não está ciente de suas miríades de partes. Você se percebe como um organismo único. Somente quando algo está errado é que você se torna ciente de suas pálpebras ou de suas glândulas. De modo semelhante, o estado de experimentar a realidade como um todo unificado é o estado saudável para os místicos. A divisão em objetos distintos deve-se, para eles, a uma perturbação mental”.

Para encerrar este capítulo, transcreverei as palavras do físico Geoffrey Chew: “A violenta reação aos últimos avanços da física moderna só pode ser compreendida se percebermos que os alicerces da física começaram a se deslocar e que esse movimento provocou a sensação de que a ciência não mais sabia onde pisava”.

*Artigo baseado nos três primeiros capítulos de "Sabedoria Incomum", de Fritjof Capra, pela Editora Cultrix.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

VIDA: UM ANTÍDOTO PARA A IMORTALIDADE

PARA SEMPRE... MORTAL!

A morte sempre foi e sempre será o problema crucial da existência humana e um tema empolgante para a Filosofia. Muitos são aqueles que desejariam viver para sempre, sem mesmo considerar as implicações que adviriam desse desejo realizado – implicações que não diriam respeito somente à sua vida individual, mas à de todas as outras pessoas, também. Há outros que são mais razoáveis – apenas desejam viver o bastante, ter muitos e muitos anos de vida, como sempre ouvem nos votos de seus amigos e parentes, durante as comemorações de seus aniversários. Mas, e quando muito não é o suficiente?

A vida de cada pessoa segue até um certo ponto e então pára – isso é a morte –, cedo ou tarde ela virá, é certo, mas, enquanto isso, nós, que ainda estamos vivos, podemos falar ou troçar sobre ela, como simples e despretensiosos homens comuns, ou como sérios e compenetrados filósofos.

É isso o que faz o escritor britânico Julian Baggini em seu livro, publicado aqui no Brasil com o título “O Porco Filósofo – 100 Experiências do Pensamento para a Vida Cotidiana”. A seguir, transcrevo um trecho da obra, que trata exatamente do que acabei de falar – a morte ou o anseio pela imortalidade. Depois de ler, reflita: Alguns podem achar a vida muito breve, mas que tal se, ao invés de pensarmos “ah, se eu tivesse mais tempo...!”, nós pensássemos “ah, se eu usasse melhor o breve tempo que tenho...!”?
Boa leitura!!!

CONDENADA À VIDA*

Vitalia descobriu o segredo da vida eterna. Agora ela jurou destruí-lo.
Há 200 anos, ela ganhou a fórmula de um elixir da imortalidade de certo dr. Makropoulos. Jovem e tola, ela o preparou e bebeu. Agora ela amaldiçoava sua ganância de vida.

Amigos, amantes e parentes tinham envelhecido e morrido, deixando-a sozinha. Sem a morte a persegui-la, ela não tinha qualquer ambição ou ímpeto, e todos os projetos que iniciava pareciam sem sentido. Ela tinha ficado cansada e entediada, e agora ansiava apenas pelo túmulo.

Na verdade, a busca pela extinção foi o único propósito que dera alguma forma e objetivo à sua vida durante o último meio século. Agora, finalmente, ela tinha o antídoto para o elixir. Ela o tomara alguns dias antes e podia sentir-se enfraquecer rapidamente. Agora, tudo o que restava fazer era se assegurar de que ninguém mais seria condenado à vida como ela fora.

O elixir a muito fora destruído. Agora ela pegou o pedaço de papel que descrevia a fórmula e o atirou no fogo. Enquanto o via queimar, pela primeira vez em décadas ela sorriu.

*“The Makropoulos Case”, in The Pigs that Wants to be Eaten and 99 Other Thought Experiments

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

A CRISE DO RACIONALISMO OCIDENTAL

AS IDEIAS E OS HOMENS DE RUPTURA*

Antes de ir direto ao ponto deste artigo, gostaria de dizer aos que ainda não me conhecem ou não leram meus escritos (mas também aos que sabem um pouco ao meu respeito) que praticar a Filosofia é para mim um exercício mais prazerosos do que lecionar a Filosofia. Com isso quero dizer que me sinto melhor não exatamente como um professor em sala de aula mas como "um filósofo diante do mundo". O artigo que passo a trabalhar aqui, sobre essas ideias e esses homens de ruptura, é, de certa forma, uma oportunidade de me insinuar - mas, que pretensão e falta de modéstia minhas! - ainda que seja... é como melhor me posso expressar.

Bem, revirando meus papéis, encontrei um texto na Revista Planeta (os créditos do autor são dados no fim deste artigo), que usarei aqui como “pano-de-fundo” desta matéria, a qual dará início a uma "série" que escreverei neste blog.

No artigo originário, o autor inicia falando em "derrocada do capitalismo ocidental" e indaga: "o que virá depois?". Era uma visão que se tinha ainda na virada do século, mas que se atualiza dia após dia, se considerarmos o que tem acontecido no mundo inteiro: a crise financeira da Europa, a chamada "Primavera Árabe", as discussões sobre "sustentabilidade", as catástrofes naturais e o poder crescente da Web, alavancado pela participação de um número cada vez maior de pessoas nas redes sociais. Dito isso, passo a escrever sobre o que realmente devo falar, isto é, o que está acontecendo e deverá marcar este terceiro milênio, no que diz respeito a uma suposta crise do racionalismo ocidental.

O jornalista Guy Sorman, professor de sociologia política em Paris, coletou, em entrevistas, o pensamento de um verdadeiro “conselho de anciãos”, aos quais ele chama de “homens da ruptura” - 29 expoentes nas mais diversas áreas de sua atuação, como alguém poderia ter feito em Atenas, no tempo dos filósofos –, e o resultado disso foi o livro “Os Verdadeiros Pensadores de Nosso Tempo” (Imago Editora). Ali, encontramos ilustres, como James Lovelock, Claude Lévi-Strauss, Noam Chomsky e Karl Popper. Este último, por exemplo, é citado dizendo: “Recuse a fragmentação dos conhecimentos, pense em tudo, não se deixe afogar pelo aumento das informações, recuse o desencanto do Ocidente e o pessimismo histórico, pois você tem a sorte de viver neste final do século 20. Não seja crédulo com nada, nem com as modas, nem com o terrorismo intelectual, nem com o dinheiro, nem com o poder. Aprenda a distinguir sempre e em qualquer lugar o Verdadeiro do Falso” – um conselho e tanto, não?!

O que Sorman pretende não é traduzir todas as teses desses pensadores e, sim, fazer uma introdução e debater abertamente com todos eles. Sorman sabia que o pensamento ocidental estava (e ainda está) passando por uma seríssima crise filosoficocientífica; que o racionalismo chegara a um beco sem saída. Assim ele colhe de Isaiah Berlin, historiador leto-britânico: “Flutuamos num barco sem leme e ignoramos onde fica o porto: é preciso continuar navegando”.

No entanto, a viagem sem rumo de Sorman começa com James Lovelock – aquele inglês que propôs a ideia de olharmos o planeta Terra como Gaia – um sistema único, no qual atmosfera, oceanos, animais, vegetais e o próprio ser humano fazem parte de uma ordem, onde cada um influencia os outros. Apesar da relação direta que muitos são levados a fazer entre Lovelock e a ecologia, ele “não é um ecologista” – pelo menos não no estilo que se vê atuante hoje em dia. Para Lovelock, a ecologia é uma espécie de “doença infantil” – “o ecologistas tem o coração no lugar, mas a cabeça perdida” – ele acredita que os ecologistas precisam de um formação científica e cultural, para poderem saber o que é perigoso ou não para a vida no planeta. Sem essa formação, parecem-se com seguidores de uma seita de fanáticos e sonhadores, que acreditam que, por serem "defensores da natureza", estão “com a verdade” – postura comum a todo grupo religioso.

O pensador russo-belga, vencedor do Prêmio Nobel de Química em 1977, Ilya Prigogine, é citado, defendendo a ideia de que “o universo e a vida são caóticos na sua origem e que o determinismo é inconcebível”. Diz o pensador: “Como se explica que se possa prever a passagem de um cometa daqui a um século e não se possa prever o tempo daqui a uma semana? É que o tempo é imprevisível, por definição” – o universo é permanentemente instável!

Já Lévi-Straus está presente no livro devido à sua posição em “diminuir a importância da cultura branca, ou melhor, em “mostrar que nenhuma cultura é superior a outra e que todas têm seus defeitos e qualidades”. Tendo estudado Carl. G. Jung, percebeu que os povos primitivos, em todo o mundo e em todas as épocas, traziam mitos que tratavam basicamente das mesmas questões e temáticas, concluindo assim que, apesar da variedade de culturas no mundo, existe uma unidade psíquica, ou um ponto de partida comum. O americano Noam Chomsky, outro entrevistado, chegou a conclusões semelhantes às de Lévi-Strauss. Ele estudou, desde a década de 1950, as semelhanças entre as variegadas línguas e dialetos e concluiu que “existe um patrimônio lingüístico comum a todos os homens”, não existindo língua primitiva ou língua moderna mais sofisticada, nenhuma é mais difícil que a outra e há regras que são comuns a todas.

Por sua vez, o psicólogo austríaco, Bruno Bettelheim, que esteve preso em campos de concentração nazistas durante dois anos, destacou que “os guardas nazistas não pareciam ter qualquer sentimento de culpa pelo grau de violência aplicado aos presos” – pareciam doutrinados a acreditar que aqueles eram homens perigosos, que pretendiam aniquilar a Alemanha. Donde se conclui que o comportamento humano “também não é previsível”, sobretudo quando o homem é levado a uma situação extrema – um homem “bom” pode transformar-se num “carrasco”. É, portanto, uma tolice dizer “Nunca farei isso!”. O húngaro Thomas Szasz, criador da chamada “Antipsiquiatria”, ainda na linha do pensamento e das conclusões de Bettelheim, considera que “a doença mental” é o resultado de um despreparo do ser humano em lidar com seu próprio mal – o lado obscuro e animal que há nele. “Queremos apenas ser bons civilizados”, diz Szasz, “não admitimos, por exemplo, que um ser humano possa escolher usar drogas, isto é, destruir-se”. E conclui: “Pensamos que alguém que escolhe espontaneamente fazer isso, ou seja, renunciar à vida que é uma coisa tão bela, só pode ser ‘um louco’, mas todo ser humano tem o direito de fazer ‘sua opção’ – inclusive a de se matar –, e nem a sociedade nem os psiquiatras tem o direito de punir esse indivíduo”. Uma declaração que muito me faz lembrar o filósofo brasileiro Denis Rosenfield (por quem tenho admiração, diga-se de passagem), que tem causado polêmica com suas ideias sobre "as liberdades individuais".

Voltando a Popper, ele diz que “Marx instaurou para os tempos modernos o culto das ideias abstratas: religião do Estado, da Nação, do Proletariado. Elas levam os espíritos simples a acreditarem que se pode compreender o mundo repetindo-se fórmulas rituais, que parecem vagamente científicas”. Para ele, marxismo e psicanálise, mais do que ideologias, são “pseudociências, desprovidas de qualquer base intelectual”. Uma declaração que, no mínimo, gera inimigos e opositores de vários lados. Mas essa é exatamente a característica desses “homens da ruptura” que interessa à obra de Sorman – homens que trabalham e dialogam com sua própria obra, sem qualquer interesse de estar ou não agradando ou conquistando o público. "A preocupação como modismo e o sucesso é o primeiro passo em direção à falsidade".


*O presente artigo baseia-se em "O Fim do Racionalismo - Idéias para o Terceiro Milênio", de autoria de Marco Antonio de Carvalho, para Revista Planeta. É uma adaptação do texto original, sem prejuízo à qualidade ou ao teor do mesmo, ao contrário, no intuito de divulgar um bom trabalho editorial, apresentando-o aos leitores deste blog.

ACOMPANHEM A PRÓXIMA PARTE DESTA SÉRIE. ATÉ LÁ!

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

MINHA MONOGRAFIA (Parte X)

PARA ALÉM DO BEM E DO MAL


Uma das idéias mais combatidas na obra de Friedrich Nietzsche é, sem dúvida, a noção do “dever” – tanto no sentido kantiano, quanto como dogma cristão (se é que há alguma diferença entre ambos!). O “imperativo categórico” elaborado por Immanuel Kant (1724 – 1804), filósofo também alemão, do século XVIII, para Nietzsche, não passa de disfarce ou reelaboração dos mandamentos cristãos, de forma sucinta: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo; não matarás; não levantarás falso testemunho, etc, etc. A elaboração kantiana da “ação livre por dever” soa aos ouvidos do homem-dinamite como absoluta insensatez e absurdo. Para um filósofo que se mostrou contrário à metafísica deveria ser vergonhoso “cair nas malhas do velho Deus cristão”, assim pensava o destruidor de todos os valores.

Nietzsche denuncia que todas as tentativas dos filósofos nos últimos séculos de fundar uma ética foram simples remendos e arremedos de platonismo e cristianismo. As concepções de “bem” e de “mal” de dada cultura são sub-produtos de uma avaliação – mas de que perspectiva partem essas avaliações? A resposta nietzscheana é que, partindo do pressuposto de que a moral vigente é peso e medida para a valoração, bem e mal aí não passam de “pré-conceitos”, tendo como perspectiva algum ser metafísico, extra-mundano, juiz a-histórico, pois para a natureza há espiritualidade, necessidade e utilidade tanto num princípio quanto noutro.
“A moral tirou a inocência do mundo e a metafísica se constitui em verdade” – é o que diz Mauro Araújo de Sousa, em seu prefácio a “Para além do bem e do mal”, e segue citando o próprio Nietzsche: “O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esquecem que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas” (Nietzsche, 2002, p.27).

O platonismo condenou o mundo sensível à pura aparência, à inutilidade, à vulgaridade; inventou o mundo das idéias, um “mundo ideal” - quer dizer, “real” - para Nietzsche, no entanto, tudo isso não passa de divagação metafísica, devaneios platônicos, desatino. O cristianismo soube apoderar-se de “tão elevada filosofia” e montar, a partir dela, seu próprio sistema ético-filosófico – sobre isso entendem muito bem Agostinho e Tomás de Aquino, filósofos cristãos – como se isso fosse possível, diria Nietzsche. O mundo natural, a vida sobre a Terra, desde então só serviu de escárnio e pilhéria para tais filósofos, santos e deuses de toda a espécie. Qualquer extra-mundo é melhor que aqui, eis a “grande avaliação universal”. Caso não simpatizemos com tal lógica, que tal volvermos para o pessimismo schopenhaueriano, que elaborou enunciados, tais como: “sem dúvida a necessidade e o tédio constituem os dois pólos da vida humana”, ou “podemos conceber nossa existência como um episódio a perturbar, inutilmente, a bem-aventurada paz do nada”, e ainda, “Hoje está mal, amanhã será pior, até que sobrevenha o mal definitivo”? Não há o que estranhar se o suicídio, a partir desse prisma, se estabelecer como ato de maior sensatez!

Quando Nietzsche expôs seu pensamento em “Para além do bem e do mal – Prelúdio de uma filosofia do futuro” (1886), ele já havia escrito dois outros livros fundamentais para seu projeto de apresentar ao mundo a necessidade de uma transvaloração dos valores. Em “A Gaia Ciência” (1882), ele nos sai com: “A piedade é o sentimento mais agradável para aqueles que são pouco orgulhosos e que não têm possibilidades de fazer grandes conquistas: a presa fácil – qualquer ser sofredor é presa fácil - é coisa que os encanta” (p. 46); e em “Assim falou Zaratustra” (1884), sentencia: “Bem e mal, prazer e dor, eu e tu – tudo parecia-me colorida fumaça diante de olhos criadores. Queria o Criador desviar o olhar de si mesmo – e, então, criou o mundo” (p. 48). Faltava ainda “O Anticristo”, talvez para dar o desfecho final contra o demasiado tempo da moral cristã, mas esse só seria publicado postumamente. Na introdução a “Para além do bem e do mal”, Mauro Araújo de Sousa esclarece: “(...) o filósofo elabora uma crítica cultural utilizando o seu perspectivismo para abordagem, em vários aspectos, da formação do espírito no Ocidente, sempre tendo em vista reverter o quadro valorativo estabelecido pelo platonismo e sua metafísica. Também, o que é destaque na obra, é a questão dos “filósofos do futuro”, estabelecedores de novas condições culturais. Denomina esses filósofos como aqueles que são capazes de tentativas, de experimentos consigo mesmos e que, por não serem dogmáticos e nem se prenderem a nada, conseguem a liberdade do espírito. Esses filósofos do futuro seriam eles próprios os seus criadores, estando, por isso, além do bem e do mal, esse vício dualístico da “moralina cristã”.”

Portanto, estar além do bem e do mal é criar e nada temer; é soltar as amarras, porque a liberdade é galardão maior que todos os tesouros extra-mundanos da decadente moral cristã.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

MINHA MONOGRAFIA ( Parte IX)

OS ESPÍRITOS LIVRES

A Europa observada por Nietzsche é um “doente”, um “decadente”, um ambiente impregnado da moral e da cultura cristãs, repleto de gente que ainda tem necessidade da “fé” à maneira cristã, gente que teme ainda soltar as amarras e navegar ao sabor do vento do “si mesmo”. O filósofo alemão analisa tanto o homem comum europeu quanto o pensador como indivíduos que confundem “o necessário” com o “verdadeiro”. A modernidade, apesar de todo o espírito científico-positivista, ainda precisa entoar versos e salmos bíblicos que inspirem seus passos para o amanhã. A filosofia nietzscheana quase chega a insinuar que “ter fé” é idêntico a “ter medo”. O cientista e o filósofo modernos ainda tratam a ciência e a filosofia como “frutos proibidos” de uma árvore que, ao invés de nos abrir os olhos para um novo horizonte, nos turvará a vista para uma tontura e queda no inferno. No entanto, a partir de si mesmo, Nietzsche vislumbra, em sua solidão, a aurora dos novos espíritos:

“O acontecimento de maior grandeza dos últimos tempos – o fato de que “Deus está morto”, ou seja, o fato de que a fé no Deus cristão despojou-se de sua plausibilidade – já lança as suas primeiras sombras na Europa”.
(NIETZSCHE, 2003, p. 181).

É muito provável que o olhar nietzscheano tenha captado, não homens daquela época (aproximadamente 1882), e sim homens do futuro, pois nem mesmo nós, homens do século XXI, conseguimos enxergar à nossa volta esses espíritos livres. A despeito dos vários golpes sofridos, o cristianismo e todo o seu arcabouço moral ainda são peso e medida para o Ocidente. Roma foi ferida em sua hegemonia pela ação insurgente da Reforma, mas o surgimento desenfreado de seitas neo-pentecostais estão, pouco a pouco, levando a “doença ocidental” a um quadro de “septicemia”. Se, de um lado, nós temos o Vaticano combatendo questões sociais como o aborto, o uso do anticoncepcionais, a pobreza e a fome, de outro, temos as igrejas evangélicas pregando a prosperidade e a riqueza como provas da fidelidade de Deus aos seus devotos, também fiéis.
Parecem incongruentes, mas são complementares, uma vez que repousam sobre os mesmos alicerces morais.

Onde estariam então esses novíssimos “espíritos livres”, vislumbrados pelo filósofo dois séculos atrás? Na verdade, Nietzsche pretende-se um “embrião”. Sua maior esperança era que homens do amanhã sintonizassem sua filosofia e, observando a decadência histórico-cultural da Europa cristã e o contra-senso do cristianismo, bradassem a plenos pulmões: “liberdade em nome da razão – morte ao Deus cristão!” É possível que já existam tais homens, ainda poucos, embrionários, mas aquela aurora ainda não se insinua...

Apesar de um expressivo reconhecimento da obra de Nietzsche, na Europa e no mundo, sua voz ainda clama no deserto criado pelos muitos longos anos de dominação cristã. Resta-nos, como alento, essas palavras poéticas, proféticas e encorajadoras de um homem que não se deixou apanhar no marasmo existencial:

“De fato, nós filósofos, “espíritos livres”, sabendo que “o antigo Deus está morto”, sentimo-nos iluminados como por uma nova aurora: o nosso coração transborda de gratidão, de espanto, de pressentimento e de expectativa... eis que enfim, mesmo se não está claro, o horizonte de novo parece livre, os nossos barcos podem voltar a partir e vogar diante de todos os perigos; volta a ser permitido qualquer tentativa de quem busca o conhecimento; o mar, o nosso mar, de novo abre todas as suas extensões; talvez, jamais tenha existido tanto “mar aberto”".
(NIETZSCHE, 2003, p. 182).

terça-feira, 25 de outubro de 2011

MINHA MONOGRAFIA (Parte VIII)

A TRANSVALORAÇAO DE TODOS OS VALORES

A ousadia do espírito nietzschiano tece um projeto de uma envergadura histórico-cultural sem precedentes – apontar um horizonte de novíssimos valores para uma humanidade sobrecarregada pela inversão axiológica cristã. Para Nietzsche, não há um só valor cristão que realmente represente a avaliação e a valoração do homem, no que há nele de natural. A moral cristã lançou um véu, uma nuvem escura, sobre os conceitos axiológicos mais puros, para então instaurar sua ética, estabelecer sua cultura e desvirtuar as concepções humanas.
A filosofia nietzschiana é um dedo apontando o caminho – “uma ponte sobre um abismo”, levando ao outro lado, à superação de si mesmo. Dois mil anos de cristianismo afundaram a Europa e todo o Ocidente em falsas concepções, em falsos valores, produzidos por errôneas avaliações, sendo necessário agora, para o resgate de nosso direito natural de medir, pesar e valorar, uma transvaloração de todos os valores cristãos.
Qualquer rápida observação criteriosa dos enunciados cristãos deixa às claras o quanto houve de deturpação valorativa. Vejamos alguns exemplos: “os primeiros serão os últimos”, “o menor será o maior”, “aquele que se humilhar será exaltado”, “quem morrer viverá”, “os mansos herdarão a terra” – talvez estes já sejam suficientes. O que a História nos conta vai na contra-mão de todo o relato bíblico. Somente os fortes venceram, sobreviveram, perpetuaram sua espécie e herdaram a terra. Os hebreus nunca encontraram sua terra prometida e os judeus de Israel ainda não testemunharam o retorno de Elias. Os cristãos de todo o Ocidente, fiéis ao sangue do “Cordeiro” e subjugados ainda pela fome, pelas doenças e pelas guerras, precisam de muita fé e “desespero” (uma total falta de esperança) para acreditarem nas palavras do profeta que vaticinava a imolação do Cristo: “Em verdade, ele tomou sobre si nossas enfermidades e carregou com nossos sofrimentos” (Is. 53,4).
No século XI, com o Cisma do Oriente, em 1054, o cristianismo sofreu seu primeiro golpe institucional – foi dividido em Igreja Católica Apostólica Romana, sob o comando do papa, e no Oriente, a Igreja Católica Apostólica Ortodoxa, sob orientação do patriarca. Mas isso não foi suficiente! Quando no século XVI, a Igreja cristã se debatia e agonizava sob o peso da própria corrupção interna, denunciada por Lutero, a Reforma veio, não para dar “o tiro de misericórdia”, e sim para renovar as forças de um moribundo, que desde então ganhou sobrevida. O cristianismo se arrasta, mas tem o meticuloso cuidado de manter seu dedo em riste, para condenar qualquer avanço cultural e científico de real expressão (no passado, homens como Galileu Galilei e Giordano Bruno e, na atualidade, as questões do aborto, da contracepção e das células-tronco, ilustram muito bem). A fé cristã exorta os homens a uma humilhação religiosa e submissão para neutralizar sua “vontade de potência” – é o que dirá o filósofo.

“O niilismo, como condição psicológica, aparecerá primeiramente, logo que sejamos forçados a dar a tudo o que acontece o “sentido” que aí não se encontra: dessa forma, quem procura, acabará por perder a coragem. O niilismo é pois o conhecimento do longo desperdício de força, a tortura que ocasiona esse “em vão”, a incerteza, a falta de oportunidade de se refazer de qualquer maneira que seja, de tranqüilizar-se em relação ao que quer que seja, a vergonha de si mesmo, como se fôramos ludibriados por longo tempo”

(NIETZSCHE, 2004, p. 94).

Para Nietzsche, a herança do cristianismo para a Europa é uma pesada nuvem sombria, plena de niilismo, pessimismo, ressentimento, falsos valores e desprezo pelo próprio homem. A transvaloração de todos os valores cristãos tem como prerrogativa uma novíssima consciência livre de “Deus”.
Bernadette Siqueira Abrão, organizadora da obra “História da Filosofia” (Coleção Os Pensadores) tenta nos esclarecer a necessidade da morte de Deus para o ideal nietzschiano, da seguinte forma:

“Mas por que a morte de Deus deve implicar a desvalorização dos demais valores? Para compreender isso deve-se levar em conta que, para Nietzsche, a morte de Deus é apenas um capítulo de uma história bem mais longa: a morte do mundo-verdade, ou seja, o fim do platonismo. Assim, o niilismo significará também que nada é verdadeiro, e por isso mesmo tudo é permitido (...). Se o “cristianismo” não é mais a “verdade”, mas “apenas uma perspectiva entre outras”, é como tal que ele deve ser analisado. A partir de agora, a nossa “civilização” tornou-se um texto a mais, submetido à analise do filólogo”.

(ABRÃO, 2004, p. 413)

É imprescindível que se tenha claro que o objetivo do filósofo não é meramente combater um ser supremo ou uma religião. Sua meta é amplamente histórica, cultural e moral. Para tanto, seu ataque precisa ser exatamente contra a maior pilastra dessa instituição religiosa, da Igreja cristã. Quase podemos ouvir sua voz reconsiderando: “nada contra os céus, contanto que nos deixem em paz!”, seria uma possível sentença nietzschiana. Se, para nos sentirmos livres e renovados, é necessário o sacrifício de alguém, nada mais glorioso do que a morte de um deus – poderia ser este o artigo número um da fé nietzschiana.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

MINHA MONOGRAFIA (Parte VII)

A MORAL DE REBANHO

A vida, conforme a compreende Nietzsche, é luta incessante, vontade de domínio, “vontade de potência” – um palco de vencedores e vencidos, no qual, a qualquer momento da história, uns podem virar os outros, num processo incessante de superação e auto-superação. Em contrapartida, o que se estabeleceu com o nome de moral, no parecer do filósofo, e que é fundamentalmente a própria moral cristã imposta ao ocidente, é um atentado à vida e à natureza, portanto, um delito contra o próprio homem.
Para o filósofo, o homem é filho da Terra – ele é corpo e vontade de sobreviver e vencer. Se falarmos em virtude, o filósofo nos dirá que as verdadeiras virtudes do homem só podem ser o orgulho, a alegria, o amor sexual, a vontade inabalável, a disciplina da intelectualidade e o reconhecimento do sentido da Terra. Porém, as virtudes exigidas pela moral cristã combatem os instintos naturais do homem – humildade, compaixão, bondade, renúncia, autopenitência, não passam de deturpações e autoflagelamento do homem. A moral para Nietzsche é “imoral”.

“A moral é a forma mais maligna da vontade de mentir, a verdadeira Circe da humanidade: é o que precisamente a tem corrompido. Não é o erro, como erro que, neste aspecto me causa espanto; não é falta de “boa vontade”, de disciplina, de decência, de coragem intelectual que sofremos a milhares de anos; é a ausência da naturalidade, o fato espantoso de que a contranatureza tem sido venerada com as maiores honras, sob o nome de moral, e ficou suspensa, como uma lei, acima da humanidade”.

(NIETZSCHE, 1990, p. 173.)


As noções de moral e de virtude encontradas em Nietzsche tendem para o sentido natural e não para uma tentativa de amoldar comportamentos e disposições existentes no homem a uma forma “ideal”, a um modelo religioso – numa palavra, a uma concepção cristã. “Para Nietzsche a verdadeira virtude não precisa de porquês. A prática do bem não deve estar condicionada a uma praga ou ao terror de um castigo” (nota de rodapé de Mário D. Ferreira Santos, in Vontade de Potência, p. 186).
Mais adiante, o próprio filósofo declarará sua indignação.
“(...) a história da luta da moral contra os instintos fundamentais da vida é a maior imoralidade que até hoje já existiu sobre a terra...” (Nietzsche, 2004, p. 190).
O repúdio ao cristianismo e a declaração da “morte de Deus” fundamentam-se no filósofo a partir da convicção de que é a moral cristã que impregnou toda a mentalidade e cultura ocidentais de antinaturalismos e entraves para uma humanidade mais vigorosa e criativa, e de que “Deus” é a denominação cristã para tudo que despreza a vida, calunia a natureza e humilha o homem. Segundo Nietzsche, a religião judaico-cristã é a forma mais mesquinha e desonesta de ressentimento; é a tentativa danosa de um povo em sofrimento de, não encontrando seu lugar e seu valor sobre a Terra, inculcar nos demais povos a idéia de que há um Deus todo-poderoso que zela por ele e castiga seus inimigos de forma vingativa e definitiva, e de que somente os “valores espirituais” podem outorgar à alma uma morada no além, no “reino dos céus”.
A idéia de “moral de rebanho” vem concomitante à de que os cristãos são guiados por um “pastor”. O rebanho cristão, que se arrasta desde a antigüidade, sem encontrar seu lugar e tendo por condição humana o sofrimento e a escravidão, apela para uma entidade metafísica, extra-mundana, a-histórica, e apregoa valores e virtudes, tais como piedade , tolerância e abnegação, mas na prática, deixa denunciar seu ressentimento contra o homem forte, o povo bárbaro, ao senhor dominante da terra em que habita. Em vista disso, Niestzsche irá considerar essa moral cristã como também sendo a “moral do escravo” – aquele que cria valores espirituais, elevados, em si, para desconsiderar os valores mundanos do seu senhor.
“Que é que determina o valor superior? Que é exatamente a moral? – O instinto de decadência; é para os esgotados e os deserdados uma forma de se vingarem” (Nietzsche, 2004, p. 232).
O rebanho – o povo hebreu – deturpou todas as concepções e todos os valores que encontraram nos povos que o escravizaram. Ou seja, a moral do “senhor” – aqui significando os adversários do povo eleito - recebeu um significado negativo – injustiça, imoralidade e mentira – e estabeleceu-se tudo o que era a negação do que ali havia. Daí temos: a justiça, a moralidade e a verdade só são possíveis a partir de uma leitura ou de uma vivência na fé judaico-cristã, tudo mais é erro! Alquebrar a força dos fortes e inverter valores são os ideais cristãos.


“O cristianismo pretende dominar homens ferozes; o meio de conseguir é torná-los doentes”. (...) ninguém tem a livre escolha de se fazer cristão; uma pessoa não se converte ao cristianismo, é necessário estar suficientemente enfermo para isso ...”

(NIETZSCHE, 2000, p. 55, 90).

A moral de rebanho – a ética cristã, seus postulados, valores e virtudes - impregnou a humanidade de uma inversão de consciência. Tudo o que era útil, valoroso, vigoroso, instintivamente humano, foi rotulado de “pecado”; toda a vida, toda a existência degenerou para a “expiação”; o simples fato de nascer já era um erro que precisava ser reparado com o sacrifício, com o arrependimento, com a humilhação. O rebanho precisava ganhar terreno neste mundo e inventou o desprezo pela terra, a negação da natureza, o niilismo. Como uma aranha lançou suas teias ‘invisíveis” por toda parte e apanhou insetos de variadas espécies. Nietzsche lamenta que homens da qualidade de Pascal, Espinosa, Kant, Schopenhauer e Wagner se tenham deixado capturar por tão infame ardil. O filósofo condena Sócrates, Platão e Epicuro por estabelecerem as bases filosóficas do cristianismo, e Agostinho e Tomás de Aquino por se encarregarem de ser eles próprios os filósofos do cristianismo.
“E os filósofos apoiaram a Igreja, a mentira da “ordem moral universal” percorre toda a evolução da filosofia até à mais moderna”. (Nietzsche, 2000, p. 60).
O homem-dimamite considerava impossível ser-se, a um só tempo, filósofo e cristão. Note-se que, para Nietzsche, filósofo é sinônimo de “espírito livre”, portanto, completamente o oposto de “rebanho”.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

MINHA MONOGRAFIA (Parte VI)

Dando continuidade à Minha Monografia, agora veremos como tratei a transformação que ocorreu na noção de Deus, do Velho para o Novo Testamento, e como Nietzsche analisa essa "degenerescência" do Todo-Poderoso do cristianismo.

O DEUS DOS CRISTÃOS


Aqui, tentaremos deixar claro como o povo hebreu manipulou a noção de seu próprio Deus, para se adequar, adaptar-se historicamente.
No Antigo Testamento, Deus se apresenta a Moisés da seguinte forma:

“EU SOU AQUELE QUE SOU”, “assim falarás aos israelitas: é Javé, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó, que me envia junto de vós. – Este é o meu nome para sempre, e é assim que me chamarão de geração em geração”
(EXÔDO, 3:14;15)

A palavra Javé, originalmente quer dizer “Ele é” (Iahweh), ou ainda pode se chamar Jeová, como é comum entre os “Testemunhas de Jeová”, que se baseiam, ao contrário das seitas cristãs neo-pentecostais, no Primeiro Testamento.
Javé é senhor, pastor e guerreiro, note-se, não de toda a humanidade, mas somente do povo eleito por ele, ao qual concede sua graça, sua bênção e paciência, pois esse mesmo povo, os hebreus, se demonstraram a gente mais infiel, descrente e traidora de toda a humanidade, fazendo com que Javé ora se regozige, ora se arrependa de tê-los como protegidos.
“Bendito seja meu povo do Egito, a Assíria, obra de minhas mãos, e Israel, minha herança!” (Is. 19, 24), e mais adiante: “Este povo vem a mim apenas com palavras e me honra só com os lábios, enquanto seu coração está longe de mim (...)” (Is. 29:13)
Esse dilema de “paixão e arrependimento” é uma constante em Jeová.
A despeito de todos os esforços e todos os “milagres” produzidos por Deus, pessoalmente ou através de seus profetas, como Abraão e Moisés, o povo em geral perdia a fé e caia na idolatria barata. Nietzsche a esse respeito tem um comentário bastante pertinente e ilustrativo:
“Para com o seu Deus é que as pessoas são mais desonestas, já que ele não tem o direito de pecar!” (Nietzsche. 2002, p. 88).
Por entre martírios e glórias, Javé conduziu seu povo – exigiu adoração, sacrifício e, ao mesmo tempo, concedeu favores e fez promessas futuras. No entanto, com o decorrer dos anos, segundo Nietzsche, o velho Javé ficou caduco, desmoralizado e enfraquecido:

“O seu Yahweh era expressão do seu sentimento de poder, do prazer e da esperança em si próprio: dele se esperam a vitória e a salvação, com ele se confiava na natureza e em que ela daria o que é necessário ao povo – principalmente a chuva”.
(NIETZSCHE, 2000, p. 59).

A análise psicológica de Nietzsche ainda nos esclarecerá sobre como o povo hebreu, em determinada época, chegou a se sentir.

“(...) mostra-se agradecido pelos grandes destinos que o elevaram à dominação, sente gratidão pela regularidade do ciclo das estações e por qualquer êxito na criação dos animais e na agricultura. Este estado de coisas foi durante muito tempo considerado ideal e era-o ainda quando foi abolido da forma mais aflitiva: no interior, a anarquia, e no exterior, os assírios (...). Mas toda a esperança foi em vão. O deus antigo nada mais podia fazer do que o fizera em outros tempos. Deviam tê-lo deixado sucumbir. Em vez disso, que aconteceu? Modificaram a noção que dele tinham – deformaram essa noção: e por esse preço o conservaram. Yahweh, o deus da “justiça”, já não mantém a sua unidade com Israel, já não é a expressão do orgulho de um povo: não passa agora de um deus condicionado(...)”
(NIETZSCHE, 2000, p. 59).

Essa análise histórico-psicológica é fundamental para que se compreenda o teor da crítica feita pelo filósofo ao cristianismo. Tenta-se, a todo custo, amarrar o Velho Testamento ao Novo, mas essa teimosia, é tentativa inequívoca de dar sobrevida ao moribundo.
Também é interessante reportarmo-nos à história de Jó – servo fiel do Senhor. Vítima da disputa entre Deus e o diabo, vê sua vida arrasada de uma hora para outra, e a certo ponto do desespero sentencia: “em lugar de me condenar direi a Deus, mostra-me porque razão me tratas assim. Encontras prazer em oprimir, em renegar a obra de tuas mãos, em favorecer os planos dos maus?”
Com o advento do Cristo, Javé passa a ser o “Pai que está nos céus”. A lei mosaica de “olho por olho, dente por dente”, como por milagre, se transforma em “dar a outra face”. O discurso de Jesus vai em direção aos sofredores, aos fracos, aos enfermos. O Deus de quem ele fala é manso e misericordioso, tem muitas moradas e já não tem eleitos.
“Tendes ouvido o que foi dito: olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo: não resistais ao mal. Se alguém te ferir a face direita, oferece-lhe também a outra” (Mat. 5, 38).
Perguntamos: se Jeová é um ser metafísico, a-histórico, absoluto, por que essa adequação aos novos tempos? Não seria mais provável e mais natural considerarmos que não é o Deus todo-poderoso que sofre essa adequação e sim seu povo eleito, os hebreus, que trata inteligentemente de se adequar ao sentido histórico de sua trajetória, ou seja, à realidade em que ora vivia? As palavras do Nazareno talvez sejam mais convincentes: “Não vim chamar à conversão os justos, mas sim os pecadores” (Luc. 5,32).
Nada havia de novo em relação ao povo hebreu, mas agora o Cristo busca os perdidos, outros povos, como se o povo eleito já estivesse redimido.
Para os cristãos, o Cristo veio para que se cumprisse a lei dos profetas do Antigo Testamento, Nietzsche, no entanto, considera que, por uma necessidade histórica, já não era mais possível ao povo eleito sustentar a mesma noção que antes tinha de seu Deus.

“Sem dúvida, quando um povo perece; quando sente desaparecer para sempre a sua fé no futuro, a sua esperança na liberdade; quando a submissão lhe parece ser necessária; quando as virtudes dos servos entram na sua consciência, então é preciso também que o seu Deus se transforme. Torna-se hipócrita, medroso, humilde; aconselha a “paz de alma”, a ausência do ódio, o respeito, até o “amor” tanto para com os amigos como para com os inimigos (...). Em outros tempos, Ele representava um povo, a força de um povo, tudo o que na alma de um povo existe de agressivo e sedento de poder; a partir de agora Ele nada mais será que o bom Deus ...”

(NIETZSCHE, 2000, p. 50).

Para Nietzsche, portanto, o Deus dos cristãos, dos hebreus, não passa de uma adequação histórica, exigida pela evolução natural e resultado da percepção das necessidades do seu tempo. Antes, o implacável e vingativo Javé, agora, o manso e compassivo pai que está nos céus.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

QUESTÕES DO CORAÇÃO

O texto que passo a transcrever neste blog foi enviado para meu e-mail pela "TRINK - tirando os trinco limitadores da realidade", e pode ser conferido em http://feedblitz.com/r.asp?l=52028821&f=406881&u=25534075&c=4078064.
Achei interessante, por isso estou disponibilizando para vocês aqui. Boa leitura e não deixe de enviar seus comentários. Obrigado!

Amor e paixão


Autor: Luciano Pillar

Quem não quer se apaixonar? E amar, quem não quer? Mas, qual a diferença entre estes sentimentos? Vamos a uma breve história fictícia, com leves pitadas de eventos reais, para lançar uma luz nesta questão.

Sentado sob uma árvore num parque vi dois jovens beijando-se apaixonadamente. Subitamente contaminado pelo clima da paixão viajei para um tempo em que eu mesmo estava apaixonado. A sensação de estar intensamente vivo era gritante e sobrepujava tudo o mais. A pessoa por quem eu me apaixonara era uma deusa que tinha mais importância do que tudo no universo. O mundo era belíssimo, acordar de manhã era uma alegria que antecedia a oportunidade de viver mais um dia, eu ouvia o cantar de cada pássaro e o som do vento. Amando e me sentindo amado eu sentia a presença divina em tudo. Eu me sentia vivo e a vida fazia sentido.

- Você já se perguntou por que vocês só costumam ver a incrível beleza da vida quando estão apaixonados? – foi uma pergunta que me pegou de surpresa, pois partiu de um senhor que estava sentado a meu lado e que eu nem sequer tinha visto chegar ali.
- Como? – meio sem jeito retruquei.
- Se uma pessoa vê a beleza da existência apenas quando está apaixonada, seria esta beleza imaginária?
- Perdão senhor, mas, eu o conheço?
- Conhece-me há muito, mas parece não lembrar. Chamam-me de Pilar. – disse-me estendendo cordialmente sua mão.

Ao apertar a mão daquela inusitada pessoa uma impressionante sensação de bem-estar e amorosidade percorreu cada célula de meu corpo e alma. Difícil descrever, mas me senti profundamente acompanhado e vi, de novo, o brilho divino na existência de tudo ao meu redor. Ele sorriu, largou minha mão, virou-se para a frente e passou a olhar para uma árvore adiante de nós com uma impressionante serenidade. Presenciei um estado de rara comunhão entre eles.

- A paixão é uma porta disponível para que qualquer um possa vislumbrar o amor.

Sem me dar tempo de expressar minha surpresa, ele continuou.

- Quem se apaixona deve lembrar desta visão do amor e buscá-lo depois em sua vida. O amor é o sentimento máximo e um dos maiores aprendizados que se espera das pessoas nesta fase de sua existência e não a paixão, que não passa de uma porta temporária.

Voltou a se aquietar e eu, diante daquele estranho que me parecia mais próximo e conhecido do que qualquer um, fui surpreendido por uma lágrima que desceu pela minha face. De repente eu estava consciente do amor, da paixão como uma forma de vislumbrá-lo e da vida cotidiana de quase todos que, sem o efeito da paixão, não conseguem sentir a grandiosidade de tudo.

- A paixão lhes permite experimentar a sensação direta do amor e não apenas suas consequências. Fazer o bem ao amado, ou até mesmo dar a vida por ele, podem ser meras consequências do amor, assim como ficar queimado é do calor. A paixão permite sentir o amor, da mesma forma que podemos sentir o calor.
- Acho que o senhor tem razão, seu Pilar.
- Querido amigo, em alguns momentos de sua vida você mesmo já experimentou a sensação do amor de forma direta, sem a necessidade da paixão. Você lembra do que lhe aconteceu no ônibus?

Estremeci. Quem era o Sr. Pilar? Como ele podia saber de mim? Por que me sinto tão bem em sua presença? Por que ele estava ali comigo?

- Sim, como poderia me esquecer?
- E então, como foi?

Fiz uma pausa que antecedeu uma apresentação maior, mas com uma estranha sensação de que o Sr. Pilar já sabia de tudo.

- Eu estava sentado no ônibus que me levava para casa depois de meu trabalho, indo para minha casa. A minha frente, várias pessoas também estavam sentadas. De repente, algo mudou e eu senti que o ônibus, a rua e os prédios do lado de fora, assim como minha casa e tudo o mais, não tinham importância alguma a não ser prover um palco onde podemos viver. E, então, aconteceu: eu amei todas aquelas pessoas! Senti um amor enorme por todos, sem exceção. Um amor maior e mais completo do que aquele que já havia sentido numa paixão, pois não havia nenhuma tensão, medo da perda ou dependência. Não havia a comum posse e nem nenhuma segunda intenção. Era um amor puro e desinteressado por todas aquelas pessoas que eu sequer conhecia. Elas não só se tornaram familiares, como também unidas a mim. Neste mundo, época e lugar eram elas que estavam ali comigo naquele ônibus e não há acaso num universo tão extremamente organizado como este.
- E quando essa sensação terminou você se perguntou o que é que acontece normalmente quando esse sentimento não está presente na sua vida cotidiana e…
- … e, Sr. Pilar, eu pergunto agora como pode o senhor saber disso? O senhor me conhece? Quem é o senhor?

Ele simplesmente não respondeu com palavras. Olhou ao redor, num estado de encantamento e união com o mundo que ali estava naquele parque. Ele realmente estava com aquelas árvores, pessoas, cães, pássaros, chão, céu e nuvens que nos cercavam e esse estado de presença dele era uma resposta em si. Eu sei quem é ele, mas meu cérebro, mente e ego mortais é que não podem acessar esse conhecimento. Resolvi não perguntar mais nada. Apenas me tornei presente ali.

- A paixão é a coisa mais próxima do amor que o espírito não desenvolvido pode experimentar. Ela faz com que a alma se revolva e saia de si mesma. Quando vivenciam essa força, mesmo as pessoas menos desenvolvidas tornam-se capazes de superar-se. – Sr. Pilar quebrou repentinamente o silêncio com estas palavras.

E continuou.

- Mas a paixão se consome em seu próprio fogo e isso costuma se tornar um problema às pessoas menos desenvolvidas. Sem entendimento, apegam-se à paixão em si e passam a buscá-la se relacionando com várias pessoas durante suas vidas. Lançam-se inconscientemente aos prazeres sensuais na expectativa de encontrarem novamente a paixão, mas o que invariavelmente descobrem é a frustração, pois não há como forçar a paixão a aparecer pela força bruta. E muito menos o amor. Agindo assim, tornam-se meros escravos dos sentidos.
- É triste. – concluí.
- E muitos confundem o amor não apenas com a paixão, mas também com outras necessidades como a sobrevivência, a posição social e a mera dependência dos hábitos de uma vida levada ao lado de outro. É muito comum que as pessoas chamem de amor a muitas coisas que não possuem relação alguma com ele.
- Você pode me dar um exemplo disso, Sr. Pilar?
- Claro. Quando pessoas que se amam se afastam uma da outra, seja qual for a razão, elas costumam se entristecer. Elas também dialogam, identificam as razões da separação, se perdoam por suas falhas e seguem suas novas vidas ajudando-se mutuamente quando necessário. Com o tempo, a tristeza passa. Isso lhe parece claro?
- Sem dúvida.
- Mas, se a tristeza ou mal-estar não passar nunca, então, ao menos uma destas pessoas se apegou à outra. Isso é uma consequência da dependência de algo passageiro – já que tudo passa – e não é originado no amor, mas no apego.
- Sim, entendo.
- Ainda é comum que a separação de uma relação supostamente amorosa resulte em sentimentos de raiva ou ódio. Estes sentimentos não vêm do amor, mas do medo. Geralmente medo de algo que nem é consciente e que foi escondido no relacionamento supostamente amoroso. Esse medo leva a diversas formas de dependência e posse.
- Já presenciei separações matrimoniais de alguns amigos e essa parece ter sido a situação mais comum. – retruquei.
- É ainda o mais comum na atual humanidade devido ao atual estágio de consciência da maioria.

Notando coerência e sabedoria nas palavras do Sr. Pilar, aproveitei para lhe indagar uma questão que me pareceu pertinente.

- Senhor, permita-me lhe perguntar uma coisa: como posso saber se devo me aproximar amorosamente de uma pessoa a despeito de sentir paixão ou não? Interesso-me muito em saber isso porque já me apaixonei e depois, com o tempo e o fim da paixão, percebi que não havia sobrado um sentimento maior.
- Caro amigo, em primeiro lugar entenda que o amor sempre existe e, apenas por isso, você o visualizou através da paixão. Lembre-se de que o amor é uma presença universal responsável pela união de tudo. Nas pessoas ele se manifesta como o maior sentimento que elas são, atualmente, capazes de experimentar. Já a paixão, você sabe, não passa de uma porta que se abre para dar passagem ao amor, mesmo ao mais atrasado dos espíritos humanos. Uma porta que abre rapidamente. E fecha, certamente.
- Sim, entendo.
- O verdadeiro amor existe entre todas as pessoas, mas ele não é visível e perceptível em sua situação normal de vida. Pelo menos não nesta fase de seu desenvolvimento. Você já sabe isso, mas a maioria ainda não.
- Mas – continuou o Sr. Pilar – quanto ao seu questionamento, eu lhe diria que você deve prestar atenção, pois existem algumas pessoas que são especialmente próximas e vocês podem até ter uma conexão maior e mais antiga do que supõe.
- Sei disso.
- Então, você deve prestar especial atenção àquelas pessoas que se aproximam de você de forma natural e harmoniosa. Observe se a presença da pessoa enriquece alegremente a sua vida. Diante destas pessoas procure não pensar nem julgar. Simplesmente não espere nada e ouça seu coração. Sinta-o falar! Você sempre sabe se souber se ouvir. Existe uma grande chance de você estar diante de alguém com quem tem uma forte conexão amorosa para que as coisas se manifestem desta maneira.

Silenciou e finalizou.

- Com o tempo você será capaz de identificar claramente estes sinais e reconhecerá as poucas pessoas com as quais você deve se envolver amorosamente compondo um casal na concepção humana. Nunca deixe passar uma oportunidade destas quando ela se apresentar e, mesmo que não se configure o relacionamento de casal, tente não se afastar desta pessoa.

Após respirar profundamente, Sr. Pilar retomou a palavra.

- Não esqueça que todos devem buscar o amor. Sentir e viver o amor pelo Criador, pelo universo, por si próprio e pelos outros. E tenha claro que a paixão ilumina temporariamente os que ainda não vêem, mas cega os outros. Ela não é o objetivo a ser alcançado.

Silenciei e sonhei com um amor leve, terno e verdadeiro. Nos braços de uma brisa morna, flutuei imerso num odor floral. Flutuei até parar entre várias pessoas desconhecidas. Virei-me e ali estava ela. Seu sorriso me fez sentir que a conhecia há eras. Entre todos foi com ela que conversei o tempo todo. Então, absortos que estávamos em nosso encontro, notamos que todos saíam a caminhar. Nos afastamos e os acompanhamos. Eu andava sozinho acompanhando o caminho dos outros quando, no mesmo instante em que senti falta dela, notei que ela estava ali, novamente a meu lado. Era ela que caminhava comigo no meio de tanta gente. E eu era feliz neste momento, simplesmente pela sua companhia. Num precioso instante da caminhada, inadvertidamente sua mão tocou na minha. Uma forte energia percorreu todo meu ser. E o dela também, pois senti seu abalo. Então, voei para longe. Voei livre e em paz. No momento em que me senti absolutamente completo e equilibrado com todo o universo, ela novamente apareceu. Ela estava ali só pelo amor que nos unia e nos atraiu a voar juntos, pois, como eu, ela também era completa e não mais precisava de outro para simplesmente ser. Voamos cercados por duas mandalas, uma minha, outra dela. Ao mesmo tempo belas e feias, representavam um passado onde estivemos presos, um momento de ruptura e uma posterior libertação. Cada uma desenhada de uma forma, cada uma por um espírito livre. Ali, flutuando entre nossas mandalas, lembramos que nos libertamos de nossas antigas prisões numa mesma época justamente porque nos uníramos e, assim, ficamos fortalecidos pelo nosso amor. Voando livremente pudemos ver que o amor permanecia, pois ele próprio é atemporal. Beijamo-nos profundamente. Nossos lábios moldavam-se naturalmente um ao outro de tal forma que se tornaram um. Nossas mãos se entrelaçaram em todos os corpos. O odor dela, doce e suave, tornou-se um com o meu. Nossos corpos desnudos se uniram e reuniram, fundindo-se num só. Livres, banhados num imenso oceano de amor, voamos juntos. Rodopiando num estado de sublime reunião com o Todo nos amamos e nos penetramos em todos os tempos, todas as dimensões, todas as vidas. Meu doce e suave amor, há quanto tempo esperei por este momento!

Abri os olhos lentamente e percebi que sou livre. E que conheço o amor.

Olhei para o Sr. Pilar e vi que o amava. Novamente eu me sentia como no evento do ônibus. Não havia o pensar e a razão, mas algo acima disso. Eu amava aquele senhor, as pessoas que ali estavam, a árvore cujas folhas balançavam ao vento assim como este que trazia um agradável frescor a nós. Eu amava profundamente o Criador e isso era Tudo!

Então entendi que o Amor divino e universal é muito maior do que o amor humano, cheio de suas próprias intenções e necessidades de compensações. O Amor divino, também presente em nós, é puro e incondicional. Percebi que eu já não tinha muitas perguntas e, quando entendi que a paixão é apenas um recurso para despertar a visão temporária do amor naqueles que ainda estão adormecidos, passei a admirá-la ainda mais, por um lado, e a valorizá-la menos, por outro. Entendi que a paixão, para seres como o Sr. Pilar, é um sentimento superado, pois ele sente, constantemente, algo muito maior do que ela. Algo que provoca sensações bastante mais intensas e profundas. Algo a que chamamos de amor. Com o incremento do desenvolvimento e da consciência, uma pessoa passa a perceber e a viver o Amor divino que está presente na essência de tudo, inclusive na sua.

O Sr. Pilar sumira da mesma forma como aparecera. Isso não me surpreendeu. Com amor me levantei e algumas pessoas olharam simultaneamente para mim com um sorriso estampado em suas faces. Não me surpreendi novamente, sorri para elas e sai. Amamo-nos ali.

Referências (as cores indicam transcrições literais feitas neste texto):

Palestra 44 de Eva Pierrakos; Pathwork (http://www.pathwork.org/); Pw044-AS FORCAS DO AMOR, DE EROS E DA SEXUALIDADE.doc
A história do amor no ônibus é fato real vivenciado por Luciano Pillar, autor deste texto, e foi descrita tal e qual aconteceu.

DEUS E A INTERNET

CAIU NA REDE, É “DEUS”!

O mundo ocidental, dominado pela religião cristã*, se vangloria de sua cultura e seu modus vivendi, muito mais liberais e “justos”, socialmente falando, do que os dos povos islâmicos, por exemplo, mas, como boa parte do mundo, também não olha para seu próprio umbigo, com isso deixa de ver ou admitir as mazelas e absurdos que o cristianismo perpetua há séculos e a má influência que, nos últimos anos, vem exercendo principalmente sobre os jovens. Nem os escândalos envolvendo padres pedófilos nem as contínuas denúncias de fraudes financeiras contra pastores das igrejas evangélicas põem freio à escalada vertiginosa do cristianismo, aqui no Brasil, além de em outros lugares, é claro, que conquista a cada dia jovens com seus movimentos de renovação (catolicismo) e com seus mega-cultos (evangelismo), tendo agora como poderosa aliada a ultra-famosa e utilizada WWW.
O poderio da Igreja de Roma, herdado desde o apogeu do Império Romano e alavancado com o ouro e as terras, facilmente adquiridos através de sua aliança com imperadores e reis, fez do cristianismo uma “entidade espiritual” frondosa, suficientemente capaz de defender seus interesses, desarticular seus opositores e propagandear sua prática como uma necessidade na formação do caráter do homem, um elemento sem o qual, dizem seus mais fervorosos praticantes, não haveria moralidade sobre a Terra e que é imprescindível à salvação.
Se tudo isso fosse verdade, mas não é!, todas as outras religiões do mundo (e não são poucas) não teriam qualquer valor, uma vez que seus fiéis não adoram “o Deus cristão” (a saber: o Pai de Jesus Cristo, seu único filho, e dos quais somos meras criaturas, até que aceitemos “de coração” que este morreu na cruz por nossos pecados e que somente o seu sangue poderá nos redimir diante do Criador).
Assim como o cristianismo tem seu líder maior, o Papa, e toda uma hierarquia de sacerdotes (homens que se ocupam em levar ao povo os ensinamentos e a filosofia de sua doutrina religiosa), as outras religiões institucionais, como o judaísmo, o islamismo, o budismo e o hinduísmo, também os têm; assim como o cristianismo tem suas dissidências e seus sincretismos, as outras, também. Esse quadro, ou seja, essa diversificação ou “degeneração” do caráter originário de um credo muitas vezes só é percebido em seus elementos superficiais, quase nunca em sua estrutura ou base. Pouca gente, sobretudo os novos convertidos, sabem ou, ao menos, se interessam em saber, se há alguma real diferença entre o catolicismo que praticavam e o neopentecostismo que acabaram de adotaram.
Um jovem indiano da década de 1940, que provavelmente viveu e foi envolvido pela campanha de libertação da Índia do domínio britânico, capitaneada por Mahatma Gandhi, deve ter se orgulhado de ter um líder politicorreligioso hindu daquela estirpe e se mantido fervoroso em sua fé, orando a Vishnu, Brahma ou Krishna (nomes com os quais relacionam Deus), para que “os invasores” saíssem do seu país, talvez sem considerar (ou mesmo saber) que os ingleses eram cristãos, e que, portanto, deveriam ser considerados “infiéis” ou “hereges” (já que não professavam a mesma fé que a sua). Evidentemente, entretanto, outras pessoas daquele tempo, sabendo bem a força que a religião exerce sobre as massas, usou da figura de Gandhi para fomentar o ódio pelos ingleses (um sentimento que potencializaria exponencialmente qualquer reação política em favor de uma causa considerada legítima e justa). Só para registro, existem hindus há pelo menos 4 mil anos e hoje são cerca de 750 milhões no mundo inteiro.
O mundo assistiu estarrecido, no fatídico 11 de setembro 2001, aviões da própria linha comercial americana, que haviam sido seqüestrados por radicais islâmicos, serem atirados contra as Torres Gêmeas do World Trade Center. Segundo se sabe, através de um plano “diabolicamente” traçado pelo líder terrorista, Bin Laden, os E.U.A deveriam conhecer e reconhecer a força do Islã (ou melhor, “O Poder de Alá”), pagando por sua prepotência política e por seu combate aos povos islâmicos com a morte de centenas de americanos de uma forma cruel e inesquecível. O kamikase islâmico, seja o soturno homem-bomba, seja o estratégico piloto-sequestrador, é considerados um homem abençoado, digno de honras e louvores, tanto na Terra quanto no Céu. O mundo ocidental cristão, representado fortemente pelo povo americano, é visto por cerca de 1,3 bilhão de muçulmanos do mundo inteiro como “o grande inimigo”.
Quando os jovens estudantes brasileiros lêem em seus livros de História que, ao atracarem na costa daquela região continental, mais tarde denominada de “Brasil”, os portugueses encontraram “seres semi-nus”, aos quais deram o nome de “índios” (por erroneamente acharem que tinham chegado “às Índias”) e, imediatamente, tratarem de celebrar uma missa (ritual da Igreja cristã) para, junto com o poder politicoarmamentista português, também aqui instaurar seu poder religioso, esse fato histórico nada diz a seu coração religioso (menos ainda às suas mentes). Quando, através das mesmas leituras, esses jovens ficam sabendo dos métodos empregados pelos jesuítas para transformar, a qualquer custo, “aqueles selvagens” em “povo de Deus”, isto é, para que deixassem sua religião natural e primitiva e aceitassem a “única fé verdadeira”, a fé cristã – também, conhecer esse fato não comove nenhum pouco os corações desses estudantes (quem dirá às suas mentes!).
A maioria das pessoas talvez jamais parou um único momento sequer de sua vida para refletir sobre sua “herança religiosa”. Por que sou cristão? católico? hindu? muçulmano? Se as pessoas o fizessem, teriam muito sobre o que pensar – e é exatamente por isso que não o fazem! Preferem o comodismo de aceitar o que já foi aceito, por seu pais, parentes, amigos ou vizinhos; acomodam-se à mesma religião dos seus pais; concluem, sem refletir, que sua prática religiosa é “a prática universal”. Mas estão enganadas!
Uma parcela significante de jovens brasileiros, ao longo das últimas décadas, vem sendo conquistada pelos cultos extravagantes de pastores das novíssimas igrejas neopentecostais, que brotam deste “solo da mãe gentil”, tal qual o capim nasce no chão de qualquer lugar. Com isso, esses jovens imaginam que estão “mais perto de Deus” (apesar de parecerem muito longe, pois eles só oram gritando, a exemplo de seus pastores, que só sabem pregar “berrando”). O culto-show torna o espetáculo religioso atrativo para um sem-número de adolescentes e jovens que não sabem ler nem seus livros de História, falar ou escrever razoavelmente sua língua, mas acreditam que, carregando suas Bíblias debaixo do braço e se congregando várias vezes por semana, estão agradando àquele que eles acreditam ser “o Deus único”, a despeito da fé diferente de milhões de outras pessoas, mundo afora.
As redes sociais estão pululando de jovens ávidos por escrever e deixar registrado o que pensam, não só para seus amigos íntimos reais, mas também para os novos amigos virtuais. Ali, é muito comum encontrarmos postagens nas quais evidenciam-se as tendências ou práticas religiosas desses jovens. A palavra “Deus” está na rede em um sem-número de publicações, usada desde o seu sentido cultural (“ah, meu Deus, que droga!), até às mais contundentes expressões de louvor (“Seja forte, minha amiga, o nosso Deus te fará vitoriosa!”). “O que há de mal nisso?” é o que muitos perguntarão.
Quem assim perguntar certamente é uma daquelas pessoas já citadas aqui, linhas acima. Daquelas que professam uma fé, acomodadas e convictas que é “a fé verdadeira”, desconsiderando assim todos os outros tipos de fé e de fiéis. No entanto, além desse drástico e rústico pensamento, essas pessoas ainda deixam de perceber que são promotoras, juntamente com milhões de outras, da “banalização de Deus”. Elas convivem com esse “fenômeno degenerativo” do ser supostamente absoluto, empregando nomes “bonitos”, que nada têm a ver com ele – “pregação”, “louvor” e “testemunho”.
“Deus”, portanto, caiu na rede, foi apanhado maliciosamente pelos “tentáculos da Internet” e, se depender de pessoas religiosas como essas (que usam a todo momento “Deus” quase como “senha” para o Facebook, o Twitter e seus e-mails) e de pastores, que não querem apenas “berrar” nas ruas e dentro de suas igrejas, mas também abocanhar rebanhos Web afora; se depender desses aí, Deus logo perceberá que fez uma bobagem ao enviar seu Filho Jesus para ser morto tão cruelmente para nos salvar de nosso próprios pecados. Se tivesse esperado só uns dois mil anos (que para “Ele”, que tem a eternidade, não significam nada), salvaria a todos através de um link direto para o céu. O slongan poderia ser este: “Linkou, salvou!”. O diabo é se “o Diabo” tiver caído na rede primeiro. Aí... é melhor deletar tudo...


*O cristianismo continua a reunir a maioria dos fiéis de todo o mundo, constituindo cerca de um terço da humanidade. Os restantes 67% dividem-se entre religiões não cristãs, dentre as quais as mais importantes são o islamismo, o budismo e o hinduísmo. Mais de 28% dos cristãos concentram-se na Europa, enquanto outros 24% estão na América Latina. Só o número de Católicos ultrapassa, em 1999, a marca de 1 bilhão de adeptos, ficando em 17,5% da população do planeta, segundo aEnciclopédia Britânica. No decorrer da década de 90, os protestantes aumentam o número de adeptos em 120%. O islamismo avança nos países onde essa religião já é predominante: o crescimento é de 157% nos anos 90. As religiões orientais, como o budismo, o zen-budismo e o hinduísmo, no ocidente, passam, no final do século XX, por um período de crescimento.
Fonte: almanaque abril 2001 - religião - página 60.

sábado, 1 de outubro de 2011

Estreia na Mythos Editora

A EXISTÊNCIA COMO REPRESENTAÇÃO DA VONTADE




Com esse artigo, eu inicio minha participação numa Editora nacional com grandes publicações no campo da Filosofia e da Espiritualidade - áreas em que venho me destacando ao longo dos últimos cinco anos, durante os quais conquistei até agora nada mais, nada menos, do que 8 publicações em 4 diferentes revistas de 3 Editoras distintas. O que para mim é uma honra e coroa esforços que envidei nesses últimos anos, no sentido de não ficar estagnado na mera graduação, uma vez que sempre acreditei que há muito mais a fazer.
Em breve, será publicada minha entrevista à Revista Sexto Sentido, na qual trato da questão da suposta vida em outros planetas.

Quero, de público, agradecer mais uma vez à Sra. Ana Elizabeth Cavalcanti pelo convite que fez a mim para esta participação na Revista, pelo apoio que demonstrado aos meus projetos e pelo carinho como me recebe e responde nos e-mails.

Dito isto, ponho na boca de vocês um pouco do mel de minhas palavras, que pode ser encontrado inteiramente na Revista "Grandes Temas do Conhecimento - Filosofia" Nº05, já nas bancas.

Na página 44 da Revista, lemos:

"Se observarmos com criterioso escrutínio, perceberemos que tudo que vem à vida teima em existir, a despeito das intempéries, obstáculos e dificuldades que inapelavelmente se apresentam em contrário. Os espermatozóides correm em direção ao óvulo numa competição salutar e benfazeja de causar inveja a qualquer maratona de tradição internacional ou corrida da bilionária Fórmula 1; a semente que cai ao solo busca sofregamente penetrar nele, para dali extrair seu alimento e, em seguida, brotar triunfante em direção ao sol, que dará alento a uma haste frágil, a qual, em breve, se tornará um frondoso caule. Exemplos na natureza existem num sem-número de casos que ocorrem a todo momento, sem cessar. A vida vem da vida, é certo; mas, acima de tudo, a vida vem da vontade de viver.
Essa foi a conclusão a que chegou um dos mais célebres filósofos pós-kantianos – seu nome, Arthur Schopenhauer (1788-1860). O rótulo de pessimista, cunhado por historiadores da Filosofia, estigmatiza e macula a memória de um dos homens mais sinceros e profundos no tocante a expressar com realismo o que é a vida e, sobretudo, o que é a vida para o homem. “Agora terei de ouvir novamente que minha filosofia é desesperada somente porque me expresso conforme a verdade, mas as pessoas querem que se lhes diga que o Senhor Deus tenha feito tudo do melhor modo. Dirijam-se à igreja, e deixem em paz os filósofos. Ao menos não exijam que estes exponham suas doutrinas conforme seus ensinamentos: isto, fazem-no os trapaceiros, os filosofastros: a estes, podem encomendar doutrinas à vontade”, eis o seu desabafo contra aqueles que esperam que a Filosofia seja a parteira de boas-novas, de verdades doces e de lucubrações pueris".