terça-feira, 27 de dezembro de 2011

ARMAS?: BANDIDOS PODEM, CIDADÃOS, NÃO!

O filósofo brasileiro Denis Rosenfield é um defensor da liberdade individual do cidadão e opositor das manobras do Governo (sempre bem paramentadas de propagandas e de estatísticas maquiadas) para tolher essa liberdade, como se a nação fosse composta somente de incapazes, velando sua (do Governo) incapacidade ou incompetência em resolver problemas sociais comuns em todo e qualquer país, como a violência. O artigo que passo a transcrever trata sobre a campanha de desarmamento da população, enquanto os bandidos, que fomentam a violência, se mantêm armados até os dentes, sem que o Estado tenha qualquer condição de proteger seus cidadãos. Isso é justo?


A VERDADE FICA AO LONGE
Denis Lerrer Rosenfield
Publicado em O GLOBO de 19.12.2011


A recente publicação do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2011 suscita uma série de questões quanto ao modo como a criminalidade tem sido enfrentada e abordada no Brasil. A campanha dita do desarmamento tem sido conduzida como se fosse ela a causa principal da redução da violência no País. Basta qualquer índice mostrar uma diminuição de homicídios, por exemplo, para que alguém já saia dizendo que isso se deve a uma campanha bem-sucedida e em curso de desarmamento.

Os fatos frequentemente nem contam, pois parece que tudo já está provado antes mesmo que os dados sejam apresentados. Não se trata de hipóteses de trabalho que deveriam ser verificadas, mas de reafirmações de uma crença de antemão válida. É como se dissessem: se a realidade não corresponde aos fatos, pior para a realidade. A fé segue verdadeira!

O que tem sido alardeado é que a campanha do desarmamento, levada a cabo nos últimos anos, está tendo êxito e isso se estaria traduzindo em diminuição da violência. Deixando, pelo momento, de lado a relação direta pretendida, vejamos os dados estatísticos apresentados pelo próprio Ministério da Justiça.
Tomemos uma série ampla, de dez anos, entre 2000 e 2010, para verificar se houve ou não, de fato, uma diminuição dos homicídios. Seria de esperar uma redução da criminalidade, considerando um desarmamento alardeado como bem-sucedido, realizado com amplas campanhas. Ora, nesses dez anos o número de homicídios cresceu de 45.360 para 49.932, ou seja, um aumento de 10,1%. Os dados estatísticos não comprovariam, portanto, que o recolhimento das armas de cidadãos - não criminosos e não bandidos, enfatizemos - se tenha traduzido na diminuição de homicídios. Um espírito aberto se perguntaria se não há outras causas em jogo, dentre as quais o desarmamento do cidadão de bem não seria a principal.

Se tomarmos as 27 unidades da Federação, 20 apresentaram aumento de crimes na década e apenas 7, redução. Ou seja, também no cômputo por Estados houve aumento da criminalidade, em que pese, reiteremos, o desarmamento dos cidadãos de bem, que procuram apenas a autodefesa, num espírito de livre escolha. Mais precisamente, poderíamos acrescentar que os bandidos não foram desarmados. Eles não se apresentam voluntariamente para entregar suas armas!

Ademais, acrescentemos que o comércio civil de armas, hoje, no Brasil é praticamente inexistente. As exigências para a compra são tão grandes e dispendiosas, além de extremamente demoradas, que esse mercado desapareceu. Bandidos não compram armas em lojas especializadas. Pior ainda, os números mostram que eles continuam armados e, muitas vezes, com armamentos pesados de restrito uso militar.

Entre os números apresentados de redução da violência, destacam-se os Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. Podemos, sensatamente, nos perguntar se foi o "desarmamento" que produziu essa diminuição. Outras hipóteses poderiam ser aventadas, dentro de um espírito científico, não fechado por uma crença preestabelecida.

No Fórum de Segurança Pública consta uma carta assinada pela Secretaria da Segurança Pública de São Paulo contestando os dados do Anuário indicando uma diminuição, nesse Estado, dos recursos destinados ao setor. Diz textualmente a carta: "O aumento dos investimentos do Governo do Estado na área de segurança é uma das principais causas da redução dos níveis de criminalidade e violência em São Paulo. Desde 1999, o Estado reduziu em 73% o número de homicídios dolosos". Acrescenta ainda a carta que em 2005 o montante destinado à segurança foi de R$ 7,01 bilhões, tendo subido em 2010 para R$ 10,78 bilhões.

Observe-se, também, que a política de segurança pública no Estado de São Paulo tem sido de combate direto à criminalidade, enfrentamento com bandidos se necessário, num espírito de tolerância zero. Os serviços de inteligência tiveram uma melhora significativa. Em 2009, 60 mil pistolas foram adquiridas, assim como 6 helicópteros. Um espírito isento poderia apresentar esses dados como razões da diminuição da violência.

No caso do Rio de Janeiro, a queda apresentada pode ser atribuída, em boa medida, a uma nova política de segurança pública, com combate direto à criminalidade via ocupação de favelas e estabelecimento de UPPs, beneficiando um enorme grupo de comunidades. A tolerância com criminalidade manifestamente diminuiu, o que se teria traduzido em redução dos homicídios.

Poderíamos listar outras causas para o aumento da criminalidade, como a epidemia do crack e o narcotráfico em geral, que têm tido um crescimento substantivo no País. E o narcotráfico, manifestamente, não pode ser combatido com o desarmamento da população civil. A confusão seria total!

O nó da questão reside na formação da opinião pública. Os formadores de opinião pró-desarmamento dos cidadãos de bem e os agentes públicos que lhes dão respaldo tornaram a sua campanha uma questão de ativismo político, recusando quaisquer opiniões ponderadas que contrariem suas crenças. Pesquisas são dirigidas por orientações ideológicas e vendidas à opinião pública como o resultado de todo um esforço científico. Mas antes de qualquer conclusão científica se estabelece um consenso do ponto de vista da opinião pública, toda posição contrária vindo a ser considerada uma espécie de anátema, coisa de "homens da bala".

O problema que se coloca consiste em levantar esse véu público, o da ideologia, de tal maneira que causas e efeitos possam ser estabelecidos, e não quaisquer nexos associativos sem fundamento. Com orientações ideológicas não teremos certamente uma redução da criminalidade. Hipóteses devem ser seriamente testadas. Se a crença toma o seu lugar, os prejuízos são evidentes. A verdade fica ao longe.

Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia da UFRGS

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

MINDWALK: A MENTE A CAMINHO DO OUTRO LADO


Enquanto selecionava o material diretamente do livro “Sabedoria Incomum”, de Fritjof Capra, para o segundo capítulo da série de artigos intitulada “A Crise do Racionalismo Ocidental”, fui surpreendido com um artigo sobre o filme “Mindwalk”, do diretor Bernt Capra, irmão de Fritjof, e resolvi transcrevê-lo para cá, para dar maior volume e respaldo ao que venho escrevendo. Ele não será considerado um capítulo da série, mas um texto de apoio ao que estamos investigando juntos, no tocante à essência do tema.
O texto originário foi publicado no Mercado Ético, mas você pode saber mais sobre seu autor, acessando www.arlindenor.blogger.com.br

PARA REPENSAR CIÊNCIA E POLÍTICA
Por Arlindenor Pedro

O filme Mindwalk, do diretor Bernt Capra — baseado em O Ponto de Mutação, livro de seu irmão, o físico austríaco Fritjof Capra — é uma excelente oportunidade para quem deseja refletir um pouco mais sobre o mundo em que vivemos, e qual a melhor forma de interpretá-lo.

Quem conhece as ideias de Capra conhece seu modo interessante de perceber o mundo e explicar a realidade. Trata-se de um pensamento holístico, que leva ao entendimento de que somos parte de uma teia universal, totalmente interligada, de inseparáveis relações. Resumidamente, a chamada “Visão Sistêmica”, proposta por Capra, opõe-se à ideia de que, para entender o todo, é preciso fragmentá-lo, indo do particular ao geral. Os sistemas seriam totalidades integradas, e, por isso, temos de pensar em termos de redes, devendo sempre ver as conexões entre as coisas. Deveríamos, pois, pensar em processos, e não em estruturas.

A base de tal forma de pensamento estaria na física subatômica, ou o que conhecemos como física quântica. É a área da física que tomou desenvolvimento com as experiências e descobertas do início do século XX, principalmente a partir de Marx Planck e sua teoria quântica de 1910. Esquecida durante certo tempo, foi retomada por outras gerações, tais como Werner Heisenberg, polêmico físico-chefe do programa nuclear alemão da II guerra, com sua “Teoria da Incerteza”; o dinamarquês Niels Borh; Otto Hanh, um dos descobridores da fissão nuclear; Erneth Rutherford, descobridor do núcleo do átomo e todos aqueles que, de alguma forma, contrapuseram-se aos princípios da inércia newtoniana.

O Ponto de Mutação, lançado por Capra em 1962, representa um marco no desenvolvimento desta nova forma de olhar mundo, precursora da linha de pensamento denominada Nova Era. Está afinado com as teorias ecológicas do presente século, como a Teoria de Gaia, do inglês James Lovelock. O filme é uma obra sobre estas ideias, Desenvolve-se ao longo de um roteiro em que os personagens se apresentam com a clara finalidade de expor as teorias de Capra, numa criação cinematográfica que nos lembra os filmes didáticos de Rossellini, na sua fase pós-neo-realismo.

O filme tem Liv Ullmann (a grande atriz dos filmes de Ingmar Bergman) no elenco, como a cientista Sonia Hoffmann. A personagem é um tipo de alter ego de Fritjof Capra. Os dois outros personagens principais são o político americano Jack Edwards, interpretado por Sam Waterston, e o poeta Thomas Harriman, vivido por John Heard.

A atmosfera reflete as grandiosas estruturas góticas do Mont Saint-Michel, abadia medieval situada no lado francês do Canal da Mancha, encravada em um espetacular rochedo, tomado todos os dias pela maré e contramaré, que espraia areais que chegam a 20 quilômetros. Os personagens desenvolvem diálogos longos e densos, acompanhados por uma câmera que alterna suas perguntas e respostas com belos planos-sequências. Acompanhados por musica, procuram vencer suas incompatibilidades e incompreensões com a contemporaneidade reavaliando suas ideias. Sonia, moradora das cercanias, apresenta, então, a visão sistêmica de Capra aos visitantes do rochedo, Jack e a Thomas, e os três discutem, durante uma tarde, política, ecologia, tecnologia e arte.
No livro, Fritjjov Capra constata que a crise que marca a sociedade contemporânea deriva do esgotamento de três grandes elementos que sustentaram a nossa civilização. O esgotamento iminente de todas as fontes não renováveis de energia – petróleo, gás, carvão – e mesmo da água obriga o redesenhar dos mapas estratégicos e induz a guerras por controle territorial. O declínio do sistema patriarcal, que foi a base da construção das sociedades humanas desde a sua fixação, lança a sociedade numa crise de valores e costumes. Finalmente, há a falência dos preceitos oriundos do iluminismo, notadamente da física cartesiana-newtoniana, que não mais podem explicar os fenômenos físicos. Torna-se necessário, pois, um novo olhar sobre a realidade, capaz de gerar fórmulas que retirem a humanidade desse impasse.

E esse olhar tem que ser inovador, fora das concepções em vigor na sociedade contemporânea. Como ele diz: uma mudança de paradigmas!

No filme, o roteiro segue por esses caminhos. Em uma cena de forte valor simbólico, os três personagens dirigem-se a um recinto do castelo onde está exposto um relógio medieval. Sonia usa-o como exemplo, para criticar a visão mecanicista da compreensão do todo por meio de sua fragmentação em unidades básicas. Dirigindo-se a Jack, afirma: “Perdoem-me, mas vocês, políticos, dificultam as coisas. As ideias da maioria de vocês, de direita ou de esquerda, parecem-me antiquadas e mecânicas como um relógio. É como se a natureza funcionasse feito um relógio. Vocês a desmontam, reduzem-na a um monte de peças simples e fáceis de entender, analisam-nas e, aí, pensam que entendem o todo.

Sonia está se referindo ao pensamento de Descartes, à sua visão mecanicista da vida, vendo o universo como um imenso relógio, que precisa apenas, para funcionar, seguir as leis racionais de seu projeto original. Caberia à sociedade, portanto, conhecê-las, interpretá-las e aplicá-las, num eterno processo mecânico. Ela afirma que esse pensamento tornou-se predominante e moldou uma sociedade extremamente racional, onde o todo não é levado em consideração e o que importa é o aqui e o agora. Critica inclusive o Brasil, por sua postura de desmatamento e extermínio das sociedades indígenas e agrícolas.

Tal visão de mundo confronta-se com a vida de Jack, recém-saído da campanha em que postulou a presidência dos Estados Unidos, e em preparativos para uma reeleição ao Senado. Embora sabedor da catástrofe que se avizinha, ele não consegue propor novos caminhos para os americanos, pois isto o levaria a perder seus eleitores. Nova política de saúde, nova forma de alimentação, postura anti-bélica, política radicalmente ecológica são posturas inaceitáveis! Ele sabe que a Utopia, por muito tempo um elemento determinante na prática política, foi afastada como matriz de comportamento e ação dos atores políticos na América e no mundo.

Na realidade, a política, tal como é apresentada hoje, foi tomada pela economia. Ao invés de ser espaço de grandes confrontos de ideias, sujeita-se aos ditames das relações de mercado, e de seus principais protagonistas. Os políticos, por força da lógica desta situação, foram reduzidos a meros produtos, para serem consumidos e descartados. Na outra ponta, também por força desta mesma lógica, ele, como político, vê os cidadãos-eleitores reduzidos à figura de consumidores, que escolhem suas preferências de acordo com o que dita o marketing político: a melhor postura, melhor imagem, apelos emocionais, etc. Desta forma, pouco importa o conteúdo das mensagens e sim a forma como são ditas-transmitidas. O debate passou a ser travado no campo da administração, destacando-se os candidato capazes convencer o eleitor de que são mais capaz para efetuar choques de gestão na máquina pública.

Ao mesmo tempo, Jack sabe que as corporações dominaram o parlamento: as votações invariavelmente se dão em torno dos interesses corporativos, ficando para segundo plano os interesses de segmentos sociais fora desses parâmetros, tais como movimentos de minorias étnicas, em defesa do meio-ambiente, etc. Poder-se-ia dizer, portanto, que a política tornou-se um negócio, sujeito, como tantos outros, às leis do mercado. Para sobreviver na política, o personagem teria que incorporar um personagem, à semelhança dos atores – com a cruel diferença que os atores só o fazem durante a peça, e ele aprisionado por toda a sua vida.

Também Sonia vive o seu problema, desiludida da política e da própria ciência, que tanto ama. Recentemente, viu suas descobertas no campo da energia laser serem desvirtuadas pelas autoridades militares, que as incorporaram ao projeto bélico “Guerra nas Estrelas”. Sentiu na carne que a ciência é dominada pelos interesses econômicos, políticos e militares, a exemplo do que aconteceu com as descobertas na área do átomo que resultaram na bomba de Hiroxima. Como o poeta Thomaz – amargurado em um mundo que cada vez menos lê poesias –, almeja momentos de reflexão. Aproveita o ambiente de Mont Saint-Michel nas poucas horas possíveis, fora do turbilhão de turistas e do comércio que explora o lugar.

Com a maré – que chega rapidamente aos 15 metros – dominando e cercando a abadia, os personagens se despedem e voltam à sua vida real, onde o mercado e as relações cada vez mais reificadas entre os homens os empurrarão para o dia a dia. Os momentos aprazíveis de descobertas que tiveram naquela tarde ficarão cada vez mais distantes.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

A CRISE DO RACIONALISMO OCIDENTAL (Parte II)

PARA ALÉM DAS FRONTEIRAS DA RAZÃO*


O físico austríaco Fritjof Capra é um a espécie de catalisador do pensamento científico, social e filosófico. Autor de dois grandes best-sellers, O Tao da Física e O Ponto de Mutação, Capra encontrou uma relação harmoniosa e, ao mesmo tempo esclarecedora, entre a Física Quântica e a Filosofia Oriental, e viu nisso algo que o ajudou a definir como uma nova visão da realidade, com múltiplas implicações para uma mudança científica e sociocultural. Assim, de uma série de encontros que teve com algumas das mentes mais influentes do século XX, entre as quais, Werner Heisenberg, Jiddu Krishnamurti, Alan Watts e Gregory Bateson, agrupou um extenso e interessantíssimo material, que resultou em outro livro, intitulado Sabedoria Incomum.

Neste segundo capítulo da série “A Crise do Racionalismo Ocidental”, transcrevo o que considerei de mais relevante nos três primeiros capítulos dessa obra que é uma coletânea de perspectivas multidisciplinares fascinantes, que tendem a apontar para novos caminhos em direção à apreensão da realidade à nossa volta, sob os auspícios de mentes brilhantes do século passado e de outras mentes de séculos bem mais distantes que este, que nos é recente, como Krishna, Lao Tsé e Buda.

O autor de “Sabedoria Incomum”, logo no seu Prefácio, diz: “Qualquer pesquisa levada a cabo nas fronteiras do conhecimento tem por característica o fato de não sabermos jamais aonde ela levará; no final, porém, se tudo correr bem em geral podemos discernir uma evolução de nossas idéias e de nosso entendimento”. Capra diz que passou quinze anos, entre as décadas de 1970 e 1980, perseguindo um único tema: a transformação fundamental da visão de mundo que ocorre na ciência e na sociedade, o desdobramento de uma nova visão da realidade e as implicações sociais dessa transformação cultural.

Esse seu interesse, diz ele, despertou quando, ainda estudante de física, aos dezenove anos de idade, leu Física e filosofia de Werner Heisenberg, físico alemão falecido em 1976, laureado com o Nobel de Física e um dos fundadores da Física Quântica. Heisenberg. Os cientistas do início do século XX começaram a explorar a estrutura dos átomos e a natureza dos fenômenos subatômicos, então se depararam com uma estranha e inesperada realidade, que estilhaçou os alicerces da sua visão de mundo e os forçou a pensar de maneira inteiramente nova. A conclusão que tiveram foi a de que o mundo material que então observavam já não se assemelhava a uma máquina, constituída de uma multidão de objetos distintos e, sim, como um todo indivisível – uma rede de relações que incluía o observador humano de modo essencial. Concluíram também que seus conceitos básicos, sua linguagem e todo o seu modo de pensar eram inadequados para a descrição dessa nova realidade. “A cisão cartesiana penetrou fundo na mente humana nos três séculos após Descartes, e levará muito tempo para ser substituída por uma atitude realmente diferente diante do problema da realidade”, afirmou Heisenberg.

É com Alan Watts, que Capra toma conhecimento do zen-budismo e, pouco depois, seu irmão Bernt Capra sugere a ele também a leitura do Bhagavad-Gita (que o próprio Capra declara ser “um dos textos espirituais mais belos e profundos da Índia”). Watts, filósofo britânico, falecido em 1973, também era escritor e estudante de religião comparada, e uma espécie de “intérprete” da Filosofia Oriental para o Ocidente. Tinha muita influência dentro das comunidades hippies e era considerado um herói da contracultura. Apesar de ter feito antes algumas leituras sobre a filosofia e a religião orientais, Capra admite que foi com Watts que veio a conhecer a sua essência.

Em seguida, Capra se aproxima do indiano de formação inglesa, Jiddu Krishnamurti, um pensador original, que rejeitava toda autoridade espiritual e todas as tradições religiosas. Krishnamurti se propusera a tarefa de usar a linguagem e o raciocínio para levar seus ouvintes para além do conteúdo linguístico e da razão, de forma impressionante. O propósito era fazer com que as pessoas envolvidas naquele processo de análise chegassem à nítida sensação de que os problemas existenciais só poderiam ser realmente sanados quando elas fossem capazes d ir além do simples pensamento, da linguagem e do tempo. O pensador indiano chamava isso de “freedom from the known”, ou seja, “libertar-se do conhecido”.

Esse encontro com Krishnamurti abalou o jovem Capra, que acabara de iniciar o que parecia ser uma promissora carreira científica, que, então, viveu um momento de dilema: “Deveria desistir da carreira científica nesse estágio inicial, ou deveria continuá-la, abandonando toda esperança de alcançar a auto-realização espiritual?”. Resolveu então perguntar ao próprio Krishnamurti: “Como posso ser um cientista e ainda assim seguir seu conselho para interromper o pensamento e libertar-me do conhecido?”. Segundo Capra, o pensador indiano respondeu sem pestanejar: “Primeiro você é um ser humano, e depois é um cientista!”. O que significava dizer que antes de tudo o jovem físico deveria se tornar “livre”, e que essa “liberdade” não pode ser ationgida pelo pensamento racional – ela só pode ser atingida pela “meditação” – a compreensão da totalidade da vida, onde cessam todas as formas de fragmentação. Apesar desse conselho, e paradoxalmente, Krishnamurti, ao final do encontro com Capra, não deixou de sentenciar em perfeito francês: “J’adore la science. C’est merveilleux”.

Capra descobrira assim o paralelismo que pode haver entre a física moderna e misticismo oriental. Ele diz que, através do zen-budismo, ficou conhecendo pela primeira vez o papel do paradoxo nas tradições místicas, que os mestres espirituais do Oriente recorrem, com grande habilidade, a enigmas paradoxais para fazer seus discípulos perceberem as limitações da lógica e do uso da razão – o zen se utiliza dos chamados “koans”, que não podem ser resolvidos pelo raciocínio e levam o estudante a interromper o processo do pensamento, tendo assim uma experiência não-verbal da realidade. Declara Capra: “Quando li pela primeira vez a respeito do método dos koans no treinamento zen, senti algo estranhamente familiar. Eu passara muitos anos estudando outro tipo de paradoxo que parecia desempenhar papel semelhante no treinamento dos físicos. Havia diferenças, é claro”. Essas reflexões a respeito desses paradoxos o levariam novamente a declarar, mais adiante: “Tempos depois, também vim a compreender porque os físicos quânticos e os místicos orientais depararam com problemas semelhantes e passaram por experiências semelhantes. Sempre que a natureza essencial das coisas é analisada pelo intelecto, ela parecerá absurda ou paradoxal. Isso foi sempre reconhecido pelos místicos, mas só muito recentemente tornou-se um problema para a ciência. Durante séculos, os fenômenos estudados pela ciência faziam parte do mundo cotidiano dos cientistas e, portanto, pertenciam ao domínio da sua experiência sensorial. Como as imagens e conceitos da linguagem que usavam provinham exatamente dessa experiência dos sentidos, eles eram suficientes e adequados para descrever os fenômenos naturais”.

Capra diz que os físicos nucleares proporcionaram aos demais cientistas os primeiros vislumbres da natureza essencial das coisas, passaram a lidar com experiências não- sensoriais da realidade, exatamente como já faziam os místicos orientais, e dessa forma tiveram de enfrentar os aspectos paradoxais dessas experiências. O próprio Capra fala de sua experiência “mística” que o levou a escrever “O Tao da Física”. Suas palavras são as seguintes:

“Eu estava na praia e observava o movimento das ondas, sentindo ao mesmo tempo o ritmo da respiração. Nesse momento, de súbito, apercebi-me intensamente do ambiente que me cercava: este se me afigurava como se participasse de uma gigantesca dança cósmica. Como físico, eu sabia que a areia, as rochas, a água e o ar a meu redor eram feitos de moléculas e átomos em vibração, que consistiam de partículas. Sabia também que a atmosfera da Terra era constantemente bombardeada por chuvas de ‘raios cósmicos’, partículas de alta energia que sofriam múltiplas colisões à medidad que penetrava na atmosfera. [...] Sentado na praia, senti que minhas experiências anteriores adquiriam vida. [...] ‘Vi’ os átomos dos elementos – bem como aqueles pertencentes ao meu próprio corpo – participarem dessa dança cósmica de energia. Senti o seu ritmo e ‘ouvi’ o seu som. Nesse momento compreendi que se tratava da Dança de Xiva, o deus dos dançarinos, adorado pelos hindus”.

Algum tempo depois dessa experiência incomum, Fritjof Capra, ouviu do estudioso e sábio indiano Phiroz Mehta a seguinte observação: “Pense em seu próprio corpo; quando você está com saúde, não está ciente de suas miríades de partes. Você se percebe como um organismo único. Somente quando algo está errado é que você se torna ciente de suas pálpebras ou de suas glândulas. De modo semelhante, o estado de experimentar a realidade como um todo unificado é o estado saudável para os místicos. A divisão em objetos distintos deve-se, para eles, a uma perturbação mental”.

Para encerrar este capítulo, transcreverei as palavras do físico Geoffrey Chew: “A violenta reação aos últimos avanços da física moderna só pode ser compreendida se percebermos que os alicerces da física começaram a se deslocar e que esse movimento provocou a sensação de que a ciência não mais sabia onde pisava”.

*Artigo baseado nos três primeiros capítulos de "Sabedoria Incomum", de Fritjof Capra, pela Editora Cultrix.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

VIDA: UM ANTÍDOTO PARA A IMORTALIDADE

PARA SEMPRE... MORTAL!

A morte sempre foi e sempre será o problema crucial da existência humana e um tema empolgante para a Filosofia. Muitos são aqueles que desejariam viver para sempre, sem mesmo considerar as implicações que adviriam desse desejo realizado – implicações que não diriam respeito somente à sua vida individual, mas à de todas as outras pessoas, também. Há outros que são mais razoáveis – apenas desejam viver o bastante, ter muitos e muitos anos de vida, como sempre ouvem nos votos de seus amigos e parentes, durante as comemorações de seus aniversários. Mas, e quando muito não é o suficiente?

A vida de cada pessoa segue até um certo ponto e então pára – isso é a morte –, cedo ou tarde ela virá, é certo, mas, enquanto isso, nós, que ainda estamos vivos, podemos falar ou troçar sobre ela, como simples e despretensiosos homens comuns, ou como sérios e compenetrados filósofos.

É isso o que faz o escritor britânico Julian Baggini em seu livro, publicado aqui no Brasil com o título “O Porco Filósofo – 100 Experiências do Pensamento para a Vida Cotidiana”. A seguir, transcrevo um trecho da obra, que trata exatamente do que acabei de falar – a morte ou o anseio pela imortalidade. Depois de ler, reflita: Alguns podem achar a vida muito breve, mas que tal se, ao invés de pensarmos “ah, se eu tivesse mais tempo...!”, nós pensássemos “ah, se eu usasse melhor o breve tempo que tenho...!”?
Boa leitura!!!

CONDENADA À VIDA*

Vitalia descobriu o segredo da vida eterna. Agora ela jurou destruí-lo.
Há 200 anos, ela ganhou a fórmula de um elixir da imortalidade de certo dr. Makropoulos. Jovem e tola, ela o preparou e bebeu. Agora ela amaldiçoava sua ganância de vida.

Amigos, amantes e parentes tinham envelhecido e morrido, deixando-a sozinha. Sem a morte a persegui-la, ela não tinha qualquer ambição ou ímpeto, e todos os projetos que iniciava pareciam sem sentido. Ela tinha ficado cansada e entediada, e agora ansiava apenas pelo túmulo.

Na verdade, a busca pela extinção foi o único propósito que dera alguma forma e objetivo à sua vida durante o último meio século. Agora, finalmente, ela tinha o antídoto para o elixir. Ela o tomara alguns dias antes e podia sentir-se enfraquecer rapidamente. Agora, tudo o que restava fazer era se assegurar de que ninguém mais seria condenado à vida como ela fora.

O elixir a muito fora destruído. Agora ela pegou o pedaço de papel que descrevia a fórmula e o atirou no fogo. Enquanto o via queimar, pela primeira vez em décadas ela sorriu.

*“The Makropoulos Case”, in The Pigs that Wants to be Eaten and 99 Other Thought Experiments