quinta-feira, 24 de novembro de 2011

A CRISE DO RACIONALISMO OCIDENTAL

AS IDEIAS E OS HOMENS DE RUPTURA*

Antes de ir direto ao ponto deste artigo, gostaria de dizer aos que ainda não me conhecem ou não leram meus escritos (mas também aos que sabem um pouco ao meu respeito) que praticar a Filosofia é para mim um exercício mais prazerosos do que lecionar a Filosofia. Com isso quero dizer que me sinto melhor não exatamente como um professor em sala de aula mas como "um filósofo diante do mundo". O artigo que passo a trabalhar aqui, sobre essas ideias e esses homens de ruptura, é, de certa forma, uma oportunidade de me insinuar - mas, que pretensão e falta de modéstia minhas! - ainda que seja... é como melhor me posso expressar.

Bem, revirando meus papéis, encontrei um texto na Revista Planeta (os créditos do autor são dados no fim deste artigo), que usarei aqui como “pano-de-fundo” desta matéria, a qual dará início a uma "série" que escreverei neste blog.

No artigo originário, o autor inicia falando em "derrocada do capitalismo ocidental" e indaga: "o que virá depois?". Era uma visão que se tinha ainda na virada do século, mas que se atualiza dia após dia, se considerarmos o que tem acontecido no mundo inteiro: a crise financeira da Europa, a chamada "Primavera Árabe", as discussões sobre "sustentabilidade", as catástrofes naturais e o poder crescente da Web, alavancado pela participação de um número cada vez maior de pessoas nas redes sociais. Dito isso, passo a escrever sobre o que realmente devo falar, isto é, o que está acontecendo e deverá marcar este terceiro milênio, no que diz respeito a uma suposta crise do racionalismo ocidental.

O jornalista Guy Sorman, professor de sociologia política em Paris, coletou, em entrevistas, o pensamento de um verdadeiro “conselho de anciãos”, aos quais ele chama de “homens da ruptura” - 29 expoentes nas mais diversas áreas de sua atuação, como alguém poderia ter feito em Atenas, no tempo dos filósofos –, e o resultado disso foi o livro “Os Verdadeiros Pensadores de Nosso Tempo” (Imago Editora). Ali, encontramos ilustres, como James Lovelock, Claude Lévi-Strauss, Noam Chomsky e Karl Popper. Este último, por exemplo, é citado dizendo: “Recuse a fragmentação dos conhecimentos, pense em tudo, não se deixe afogar pelo aumento das informações, recuse o desencanto do Ocidente e o pessimismo histórico, pois você tem a sorte de viver neste final do século 20. Não seja crédulo com nada, nem com as modas, nem com o terrorismo intelectual, nem com o dinheiro, nem com o poder. Aprenda a distinguir sempre e em qualquer lugar o Verdadeiro do Falso” – um conselho e tanto, não?!

O que Sorman pretende não é traduzir todas as teses desses pensadores e, sim, fazer uma introdução e debater abertamente com todos eles. Sorman sabia que o pensamento ocidental estava (e ainda está) passando por uma seríssima crise filosoficocientífica; que o racionalismo chegara a um beco sem saída. Assim ele colhe de Isaiah Berlin, historiador leto-britânico: “Flutuamos num barco sem leme e ignoramos onde fica o porto: é preciso continuar navegando”.

No entanto, a viagem sem rumo de Sorman começa com James Lovelock – aquele inglês que propôs a ideia de olharmos o planeta Terra como Gaia – um sistema único, no qual atmosfera, oceanos, animais, vegetais e o próprio ser humano fazem parte de uma ordem, onde cada um influencia os outros. Apesar da relação direta que muitos são levados a fazer entre Lovelock e a ecologia, ele “não é um ecologista” – pelo menos não no estilo que se vê atuante hoje em dia. Para Lovelock, a ecologia é uma espécie de “doença infantil” – “o ecologistas tem o coração no lugar, mas a cabeça perdida” – ele acredita que os ecologistas precisam de um formação científica e cultural, para poderem saber o que é perigoso ou não para a vida no planeta. Sem essa formação, parecem-se com seguidores de uma seita de fanáticos e sonhadores, que acreditam que, por serem "defensores da natureza", estão “com a verdade” – postura comum a todo grupo religioso.

O pensador russo-belga, vencedor do Prêmio Nobel de Química em 1977, Ilya Prigogine, é citado, defendendo a ideia de que “o universo e a vida são caóticos na sua origem e que o determinismo é inconcebível”. Diz o pensador: “Como se explica que se possa prever a passagem de um cometa daqui a um século e não se possa prever o tempo daqui a uma semana? É que o tempo é imprevisível, por definição” – o universo é permanentemente instável!

Já Lévi-Straus está presente no livro devido à sua posição em “diminuir a importância da cultura branca, ou melhor, em “mostrar que nenhuma cultura é superior a outra e que todas têm seus defeitos e qualidades”. Tendo estudado Carl. G. Jung, percebeu que os povos primitivos, em todo o mundo e em todas as épocas, traziam mitos que tratavam basicamente das mesmas questões e temáticas, concluindo assim que, apesar da variedade de culturas no mundo, existe uma unidade psíquica, ou um ponto de partida comum. O americano Noam Chomsky, outro entrevistado, chegou a conclusões semelhantes às de Lévi-Strauss. Ele estudou, desde a década de 1950, as semelhanças entre as variegadas línguas e dialetos e concluiu que “existe um patrimônio lingüístico comum a todos os homens”, não existindo língua primitiva ou língua moderna mais sofisticada, nenhuma é mais difícil que a outra e há regras que são comuns a todas.

Por sua vez, o psicólogo austríaco, Bruno Bettelheim, que esteve preso em campos de concentração nazistas durante dois anos, destacou que “os guardas nazistas não pareciam ter qualquer sentimento de culpa pelo grau de violência aplicado aos presos” – pareciam doutrinados a acreditar que aqueles eram homens perigosos, que pretendiam aniquilar a Alemanha. Donde se conclui que o comportamento humano “também não é previsível”, sobretudo quando o homem é levado a uma situação extrema – um homem “bom” pode transformar-se num “carrasco”. É, portanto, uma tolice dizer “Nunca farei isso!”. O húngaro Thomas Szasz, criador da chamada “Antipsiquiatria”, ainda na linha do pensamento e das conclusões de Bettelheim, considera que “a doença mental” é o resultado de um despreparo do ser humano em lidar com seu próprio mal – o lado obscuro e animal que há nele. “Queremos apenas ser bons civilizados”, diz Szasz, “não admitimos, por exemplo, que um ser humano possa escolher usar drogas, isto é, destruir-se”. E conclui: “Pensamos que alguém que escolhe espontaneamente fazer isso, ou seja, renunciar à vida que é uma coisa tão bela, só pode ser ‘um louco’, mas todo ser humano tem o direito de fazer ‘sua opção’ – inclusive a de se matar –, e nem a sociedade nem os psiquiatras tem o direito de punir esse indivíduo”. Uma declaração que muito me faz lembrar o filósofo brasileiro Denis Rosenfield (por quem tenho admiração, diga-se de passagem), que tem causado polêmica com suas ideias sobre "as liberdades individuais".

Voltando a Popper, ele diz que “Marx instaurou para os tempos modernos o culto das ideias abstratas: religião do Estado, da Nação, do Proletariado. Elas levam os espíritos simples a acreditarem que se pode compreender o mundo repetindo-se fórmulas rituais, que parecem vagamente científicas”. Para ele, marxismo e psicanálise, mais do que ideologias, são “pseudociências, desprovidas de qualquer base intelectual”. Uma declaração que, no mínimo, gera inimigos e opositores de vários lados. Mas essa é exatamente a característica desses “homens da ruptura” que interessa à obra de Sorman – homens que trabalham e dialogam com sua própria obra, sem qualquer interesse de estar ou não agradando ou conquistando o público. "A preocupação como modismo e o sucesso é o primeiro passo em direção à falsidade".


*O presente artigo baseia-se em "O Fim do Racionalismo - Idéias para o Terceiro Milênio", de autoria de Marco Antonio de Carvalho, para Revista Planeta. É uma adaptação do texto original, sem prejuízo à qualidade ou ao teor do mesmo, ao contrário, no intuito de divulgar um bom trabalho editorial, apresentando-o aos leitores deste blog.

ACOMPANHEM A PRÓXIMA PARTE DESTA SÉRIE. ATÉ LÁ!

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

MINHA MONOGRAFIA (Parte X)

PARA ALÉM DO BEM E DO MAL


Uma das idéias mais combatidas na obra de Friedrich Nietzsche é, sem dúvida, a noção do “dever” – tanto no sentido kantiano, quanto como dogma cristão (se é que há alguma diferença entre ambos!). O “imperativo categórico” elaborado por Immanuel Kant (1724 – 1804), filósofo também alemão, do século XVIII, para Nietzsche, não passa de disfarce ou reelaboração dos mandamentos cristãos, de forma sucinta: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo; não matarás; não levantarás falso testemunho, etc, etc. A elaboração kantiana da “ação livre por dever” soa aos ouvidos do homem-dinamite como absoluta insensatez e absurdo. Para um filósofo que se mostrou contrário à metafísica deveria ser vergonhoso “cair nas malhas do velho Deus cristão”, assim pensava o destruidor de todos os valores.

Nietzsche denuncia que todas as tentativas dos filósofos nos últimos séculos de fundar uma ética foram simples remendos e arremedos de platonismo e cristianismo. As concepções de “bem” e de “mal” de dada cultura são sub-produtos de uma avaliação – mas de que perspectiva partem essas avaliações? A resposta nietzscheana é que, partindo do pressuposto de que a moral vigente é peso e medida para a valoração, bem e mal aí não passam de “pré-conceitos”, tendo como perspectiva algum ser metafísico, extra-mundano, juiz a-histórico, pois para a natureza há espiritualidade, necessidade e utilidade tanto num princípio quanto noutro.
“A moral tirou a inocência do mundo e a metafísica se constitui em verdade” – é o que diz Mauro Araújo de Sousa, em seu prefácio a “Para além do bem e do mal”, e segue citando o próprio Nietzsche: “O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esquecem que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas” (Nietzsche, 2002, p.27).

O platonismo condenou o mundo sensível à pura aparência, à inutilidade, à vulgaridade; inventou o mundo das idéias, um “mundo ideal” - quer dizer, “real” - para Nietzsche, no entanto, tudo isso não passa de divagação metafísica, devaneios platônicos, desatino. O cristianismo soube apoderar-se de “tão elevada filosofia” e montar, a partir dela, seu próprio sistema ético-filosófico – sobre isso entendem muito bem Agostinho e Tomás de Aquino, filósofos cristãos – como se isso fosse possível, diria Nietzsche. O mundo natural, a vida sobre a Terra, desde então só serviu de escárnio e pilhéria para tais filósofos, santos e deuses de toda a espécie. Qualquer extra-mundo é melhor que aqui, eis a “grande avaliação universal”. Caso não simpatizemos com tal lógica, que tal volvermos para o pessimismo schopenhaueriano, que elaborou enunciados, tais como: “sem dúvida a necessidade e o tédio constituem os dois pólos da vida humana”, ou “podemos conceber nossa existência como um episódio a perturbar, inutilmente, a bem-aventurada paz do nada”, e ainda, “Hoje está mal, amanhã será pior, até que sobrevenha o mal definitivo”? Não há o que estranhar se o suicídio, a partir desse prisma, se estabelecer como ato de maior sensatez!

Quando Nietzsche expôs seu pensamento em “Para além do bem e do mal – Prelúdio de uma filosofia do futuro” (1886), ele já havia escrito dois outros livros fundamentais para seu projeto de apresentar ao mundo a necessidade de uma transvaloração dos valores. Em “A Gaia Ciência” (1882), ele nos sai com: “A piedade é o sentimento mais agradável para aqueles que são pouco orgulhosos e que não têm possibilidades de fazer grandes conquistas: a presa fácil – qualquer ser sofredor é presa fácil - é coisa que os encanta” (p. 46); e em “Assim falou Zaratustra” (1884), sentencia: “Bem e mal, prazer e dor, eu e tu – tudo parecia-me colorida fumaça diante de olhos criadores. Queria o Criador desviar o olhar de si mesmo – e, então, criou o mundo” (p. 48). Faltava ainda “O Anticristo”, talvez para dar o desfecho final contra o demasiado tempo da moral cristã, mas esse só seria publicado postumamente. Na introdução a “Para além do bem e do mal”, Mauro Araújo de Sousa esclarece: “(...) o filósofo elabora uma crítica cultural utilizando o seu perspectivismo para abordagem, em vários aspectos, da formação do espírito no Ocidente, sempre tendo em vista reverter o quadro valorativo estabelecido pelo platonismo e sua metafísica. Também, o que é destaque na obra, é a questão dos “filósofos do futuro”, estabelecedores de novas condições culturais. Denomina esses filósofos como aqueles que são capazes de tentativas, de experimentos consigo mesmos e que, por não serem dogmáticos e nem se prenderem a nada, conseguem a liberdade do espírito. Esses filósofos do futuro seriam eles próprios os seus criadores, estando, por isso, além do bem e do mal, esse vício dualístico da “moralina cristã”.”

Portanto, estar além do bem e do mal é criar e nada temer; é soltar as amarras, porque a liberdade é galardão maior que todos os tesouros extra-mundanos da decadente moral cristã.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

MINHA MONOGRAFIA ( Parte IX)

OS ESPÍRITOS LIVRES

A Europa observada por Nietzsche é um “doente”, um “decadente”, um ambiente impregnado da moral e da cultura cristãs, repleto de gente que ainda tem necessidade da “fé” à maneira cristã, gente que teme ainda soltar as amarras e navegar ao sabor do vento do “si mesmo”. O filósofo alemão analisa tanto o homem comum europeu quanto o pensador como indivíduos que confundem “o necessário” com o “verdadeiro”. A modernidade, apesar de todo o espírito científico-positivista, ainda precisa entoar versos e salmos bíblicos que inspirem seus passos para o amanhã. A filosofia nietzscheana quase chega a insinuar que “ter fé” é idêntico a “ter medo”. O cientista e o filósofo modernos ainda tratam a ciência e a filosofia como “frutos proibidos” de uma árvore que, ao invés de nos abrir os olhos para um novo horizonte, nos turvará a vista para uma tontura e queda no inferno. No entanto, a partir de si mesmo, Nietzsche vislumbra, em sua solidão, a aurora dos novos espíritos:

“O acontecimento de maior grandeza dos últimos tempos – o fato de que “Deus está morto”, ou seja, o fato de que a fé no Deus cristão despojou-se de sua plausibilidade – já lança as suas primeiras sombras na Europa”.
(NIETZSCHE, 2003, p. 181).

É muito provável que o olhar nietzscheano tenha captado, não homens daquela época (aproximadamente 1882), e sim homens do futuro, pois nem mesmo nós, homens do século XXI, conseguimos enxergar à nossa volta esses espíritos livres. A despeito dos vários golpes sofridos, o cristianismo e todo o seu arcabouço moral ainda são peso e medida para o Ocidente. Roma foi ferida em sua hegemonia pela ação insurgente da Reforma, mas o surgimento desenfreado de seitas neo-pentecostais estão, pouco a pouco, levando a “doença ocidental” a um quadro de “septicemia”. Se, de um lado, nós temos o Vaticano combatendo questões sociais como o aborto, o uso do anticoncepcionais, a pobreza e a fome, de outro, temos as igrejas evangélicas pregando a prosperidade e a riqueza como provas da fidelidade de Deus aos seus devotos, também fiéis.
Parecem incongruentes, mas são complementares, uma vez que repousam sobre os mesmos alicerces morais.

Onde estariam então esses novíssimos “espíritos livres”, vislumbrados pelo filósofo dois séculos atrás? Na verdade, Nietzsche pretende-se um “embrião”. Sua maior esperança era que homens do amanhã sintonizassem sua filosofia e, observando a decadência histórico-cultural da Europa cristã e o contra-senso do cristianismo, bradassem a plenos pulmões: “liberdade em nome da razão – morte ao Deus cristão!” É possível que já existam tais homens, ainda poucos, embrionários, mas aquela aurora ainda não se insinua...

Apesar de um expressivo reconhecimento da obra de Nietzsche, na Europa e no mundo, sua voz ainda clama no deserto criado pelos muitos longos anos de dominação cristã. Resta-nos, como alento, essas palavras poéticas, proféticas e encorajadoras de um homem que não se deixou apanhar no marasmo existencial:

“De fato, nós filósofos, “espíritos livres”, sabendo que “o antigo Deus está morto”, sentimo-nos iluminados como por uma nova aurora: o nosso coração transborda de gratidão, de espanto, de pressentimento e de expectativa... eis que enfim, mesmo se não está claro, o horizonte de novo parece livre, os nossos barcos podem voltar a partir e vogar diante de todos os perigos; volta a ser permitido qualquer tentativa de quem busca o conhecimento; o mar, o nosso mar, de novo abre todas as suas extensões; talvez, jamais tenha existido tanto “mar aberto”".
(NIETZSCHE, 2003, p. 182).