terça-feira, 19 de junho de 2012

DA ANTIGUIDADE GREGA À ATUAL POLÍTICA BRASILEIRA

O texto que transcrevo na íntegra aqui é de autoria do jornalista João Mellão Neto, escrito a convite do Instituto Millenium. Transcrevo-o por tratar-se de um artigo de "primeiríssima qualidade", de teor filosófico, que ao mesmo tempo em que resgata personagens e eventos da História, contextualiza-os com o deplorável estado da política brasileira, unindo-os por um mesmo fio - a húbris*. Em suma, um texto útil e instrutivo, inteligente e inspirador, que, certamente, acrescentará aos leitores deste blog, amigos e alunos, informação e deleite. Boa leitura!


HÚBRIS
João Mellão Neto

Na Grécia da antiguidade, era o sentimento de extrema autoconfiança que acometia os heróis após a realização de seus feitos. Não raramente, eles passavam a se sentir invencíveis, chegando até a desafiar as próprias divindades que lhes haviam concedido a glória. Os deuses gregos não admitiam tal afronta. Havia um senso da “exata medida de todas as coisas”, e não era lícito ao homem desafiar essa ordem. A alguns os deuses davam mais, a outros, menos. E cada um deveria contentar-se com aquilo que lhe era concedido.

Júlio César, alguns séculos mais tarde, introduziu nesse conceito a questão do mérito. Para ele não havia limites à ousadia humana. Os deuses sempre abençoariam os seus pupilos, desde que estes se mostrassem merecedores de tal graça. Já na época de César, como contrabalanço ao excesso de soberba, os romanos instituíram um ritual cuja finalidade era trazer os seus generais de volta à realidade. Após seus triunfos, nos campos de batalha, eles deixavam suas tropas no Campo de Marte e seguiam, sob ovação geral, até as escadarias do Senado. Em sua companhia – na biga – seguia um sacerdote constantemente a repetir: “Memento mori” (lembra-te de que és mortal).

Avancemos dois milênios na História e encontraremos nas palavras de Napoleão Bonaparte uma visão mais fatalista desse desígnio: “Enquanto eu for útil aos deuses, não haverá força no mundo capaz de me vencer. Mas bastará que eu deixe de sê-lo que até mesmo uma mosca me derrubará”.

Napoleão fora acometido pela húbris e terminou melancolicamente os seus dias, isolado na Ilha de Santa Helena. Júlio César não teria melhor sorte: foi brutalmente esfaqueado às portas do Senado romano. Seus assassinos receavam que ele viesse a tomar para si o poder absoluto e tornar-se rei. O temor era tão grande que até mesmo discípulos seus participaram da carnificina.

A húbris, por si só, já era um instrumento de loucura. Quem sofria os seus efeitos era tomado por uma sede insaciável de glória e reconhecimento. Como bem lembrou Bertrand Russell: Napoleão invejava Carlos Magno. Carlos Magno, por sua vez, invejava Júlio César. Este invejava Alexandre, que invejava Hércules, que nunca existiu. Alertavam os persas de que nem todo o ouro, nem toda a glória, nem todo o poder do mundo são suficientes para saciar a cobiça de um único homem. Há que se compreender e se conformar com isso.

Não foi fácil construir a nossa liberdade. Ninguém tem o direito de atentar contra ela.

Pois bem! Estamos aqui a nos deleitar com história e filosofia, e não nos apercebemos de que há, entre nós, um homem que, enlouquecido pela húbris, pretende implodir as nossas instituições. Ele já investiu contra as prerrogativas do Poder Judiciário, incentiva movimentos contra a liberdade de expressão, trata o Poder Legislativo com desdém e vem dando sinais de que pretende novamente se eleger presidente da República. Ele atende pelo nome de Lula.

Ninguém entende as razões de sua implicância com a ordem democrática, uma vez que foi a própria democracia que permitiu que ele alçasse voos tão altos. Ele foi de torneiro mecânico a presidente da República graças a ela. Mérito ele demonstrou, sem dúvida.

Mas isso não faz dele alguém acima das instituições. Não foi fácil construir a nossa liberdade. Ninguém tem o direito de atentar contra ela.

Há quem veja em Lula alguns traços de caudilhismo. E não é difícil imaginá-lo trajando sombreiro e poncho a arengar as massas. Nos oito anos em que ocupou o poder, ele deu repetidas demonstrações de sua fixação em líderes carismáticos. Incensou os irmãos Castro, flertou com Evo Morales, genuflexou-se perante Hugo Chávez e persignou-se à frente de inúmeros ditadores africanos. Isso tudo sem contar a vergonhosa atitude de apoiar o ditador do Irã e o episódio de Honduras, em que o Brasil, por orientação de Chávez, custeou sozinho a sobrevida de Manuel Zelaya.

Com exceção deste último, todos os demais “caudillos” permanecem no poder, o que faz Lula se perguntar por que só ele se dispôs a entregar a faixa presidencial e voltar para São Bernardo.

Por trás de Lula existe o PT – o Partido dos Trabalhadores -, e talvez seja esse o seu “calcanhar de Aquiles”.

O substrato ideológico do partido é de origem marxista, e aos seguidores dessa seita não basta alcançar o poder e exercê-lo com excelência. É preciso, também, eliminar os adversários, estabelecer uma verdade única e emudecer aqueles que dela discordam. O conflito entre essa visão de mundo e a democracia é, portanto, inevitável.

Para o bem ou para o mal, é com essa qualidade de mão de obra que Lula conta. E, de quando em quando, é preciso tratá-la com carinho.

Criar uma elite ideologicamente confiável e minimamente capacitada é o sonho de consumo de qualquer ditador. Mussolini pretendeu criá-la permitindo o acesso ao nível superior de ensino unicamente aos jovens identificados com a sua causa.

Aqui, nestas plagas, Getúlio Vargas e o movimento militar de tudo fizeram para que os postos de confiança na administração pública fossem ocupados exclusivamente pelos seus simpatizantes.

O problema de Lula é que a húbris já o está a contagiar. E aqueles acometidos por ela costumam deixar de lado prudência, passam a subestimar os seus adversários e perder a noção do perigo.

O recente episódio de abordagem imprópria e insinuação de chantagem de um ministro do Supremo Tribunal Federal é emblemático. Lula não bebe mais somente aquele líquido refugado pelos pássaros. Ele agora ingere também a húbris. E a dependência, aí, é muito pior.

*A húbris ou hybris (em grego ὕϐρις, "hýbris") é um conceito grego que pode ser traduzido como "tudo que passa da medida; descomedimento" e que atualmente alude a uma confiança excessiva, um orgulho exagerado, presunção, arrogância ou insolência (originalmente contra os deuses), que com frequência termina sendo punida. Na Antiga Grécia, aludia a um desprezo temerário pelo espaço pessoal alheio, unido à falta de controlo sobre os próprios impulsos, sendo um sentimento violento inspirado pelas paixões exageradas, consideradas doenças pelo seu caráter irracional e desequilibrado, e concretamente por Até (a fúria ou o orgulho). Opõe-se à sofrósina, a virtude da prudência, do bom senso e do comedimento. (Fonte: Wikipédia)

quinta-feira, 14 de junho de 2012

KANT: IMPERATIVO E CATEGÓRICO

IMMANUEL KANT, UM DIVISOR DE ÁGUAS



A Filosofia tem pelo menos dois pensadores reconhecidos como "divisores de água": Sócrates e Kant. Enquanto o primeiro mudou o olhar empreendido pelos pensadores anteriores (por isso chamados de pré-socráticos), Kant traçou os limites do conhecimento humano, no período em que a crença na "Razão" propalava a ideia de que o homem tudo podia conhecer
Por: Jaya Hari Das*

Dizem que as crianças, assim que começam a falar, fazem perguntas "filosóficas", do tipo que iniciam sempre com "como" ou "por quE". Assim sendo, não seria descabida a comparação da "infância" com o período do nascimento da Filosofia entre os gregos, uma vez que aqueles antigos pensadores começaram também a indagar sobre o Universo perguntando-se "Como o Cosmos foi formado?" ou "Por que os seres nascem e morrem?", por exemplo. Antes disso, houve todo um período mitológico, no qual narrativas simplórias preenchiam a curiosidade e o imaginário das pessoas, tal qual os vários contos de fada, construídos em um mundo de fantasias, são contados até hoje às crianças, visando simplesmente aplacar seus medos ou adverti-las de certos perigos.

A humanidade pode parecer a mesma para alguns; os filhos podem parecer sempre pequenos para seus pais, mas, na verdade, algo muda inexoravelmente. Com o passar do tempo, todos começam a fazer perguntas diferentes. E isso é um bom sinal de que eles estão crescendo. As perguntas são mais incisivas e as respostas, portanto, precisam ser mais conclusivas. Sócrates, por exemplo, mudou, ainda na Antiga Grécia, o rumo das indagações de seus compatriotas, inaugurando com isso um novo momento na história da filosofia. Mas ele não seria o único, pois, apesar de, durante vários séculos, os homens deverem a ele tudo o que se construiu em termos de conhecimento do próprio homem, o tempo, senhor de todas as transformações, não deixaria tudo tão indelével assim. Bem que Platão e Aristóteles tentaram, e até foram bem-sucedidos por muitos e muitos anos!

O obscurantismo da Idade Média cobriu a humanidade sob nuvens tão escuras que os homens mal puderam se dar conta do trabalho lento e silencioso que o tempo andava fazendo em suas mentes juvenis. Como todo a adolescente, o homem medieval estava para eclodir não com espinhas, mas com espadas, que fariam estourar revoltas e revoluções por toda a Europa, em breve. Em breve, também, homens como Francis Bacon, Voltaire e Rousseau surgiriam, trazendo luzes, para afastar de uma vez por todas as trevas medievais. E a Filosofia, que ainda não havia despertado completamente do "sono dogmático" de uma obscura noite de dez longos séculos que lhe fora imposta, vai despertar de vez sob os auspícios de um filósofo que sabia muito bem viver uma vida sob as simples badaladas do seu relógio. Esse filósofo chamava-se Immanuel Kant.

Nascido em Königsberg (atual Kaliningrado), na antiga Prússia, em 1724, Emanuel Kant (que depois mudaria seu nome de batismo para Immanuel), foi o quarto de nove filhos do casal Johann Georg Kant, um artesão, e Anna Regina Reuter, uma religiosa pietista praticante. A mãe foi tão marcante na vida do filósofo que ele, como uma espécie de reação a tanto rigor religioso, manteve-se afastado da Igreja assim que cresceu, apesar de ter o ar inconfundível de um puritano alemão. Estudou no Collegium Fredericianum até entrar para a Universidade de Königsberg, aos 16 anos. Foi lá que se deparou com a filosofia de Leibniz e de Isaac Newton duas de suas grandes influências, mais tarde trocaria correspondências com Voltaire (outra grande influência). Com a morte de seu pai, seis anos após ingressar na universidade, precisou lecionar como tutor, o que o fez interromper seus estudos, mas não evitou que os concluísse com sucesso. Sua dissertação de mestrado, em 1755, intitulou-se "Novo Esclarecimento Acerca dos Primeiros Princípios Metafísicos ou simplesmente Nova Dilucidatio (título em latim). Em seguida tornou-se Privatdozent, espécie de professor particular sem remuneração pela universidade e, sim, pelos alunos que conseguisse, tendo sido bem-sucedido, porquanto muitos dos seus cursos se repetiram várias vezes, durante anos, em vista da demanda de alunos. Somente em 1770 é nomeado professor ordinário de lógica e metafísica. Só deixou sua cátedra por motivo de debilidade e velhice, sete anos antes de morrer, em 1804.

No mesmo ano da publicação de seu Nova Dilucidatio, no dia 1º de novembro, ocorrera também, um terrível a terremoto em Lisboa. Fato marcante em sua vida e na de muitos outros pensadores iluministas. Voltaire, por exemplo, escrevera no ano seguinte um poema de lamento pela condição humana (uma de suas críticas a "o melhor dos mundos possíveis" de Leibniz) e Kant, por sua vez, escrevera três pequenos trabalhos, que juntos foram publicados sob o título de Escritos Sobre o Terremoto de Lisboa (donde teceria o conceito de sublime, desenvolvido, anos depois, em sua Crítica do Juízo. Mais tarde, em 1762, após ler Emílio e O Contrato Social, rende-se a mais uma grande influência dessa vez, trata-se do genebrino Jean-Jacques Rousseau. "Quando Kant leu Emílio, não deu seu passeio matinal sob as tílias, a fim de terminar logo o livro. Foi uma acontecimento, em sua vida, encontrar ali outro homem que tateava para sair da escuridão do ateísmo e que afirmava audaciosamente a prioridade do sentimento em relação à razão teórica naqueles casos supra-sensíveis" (DURANT, 2000). Essas influências culminariam com a David Hume que, segundo o próprio Kant, foi quem o despertou do "sono dogmático". Curiosamente, esses mesmos homens que lhe serviram de influência seriam os que, mais tarde, ele procuraria refutar - "[...] a diferença radical, fundamental, que existe entre Kant e seus predecessores é que os predecessores de Kant, quando falam do conhecimento, falam do conhecimento que vão ter, do conhecimento que se vai construir, [...] da ciência que está em constituição, em germe [...], quando Kant fala do conhecimento, fala de uma ciência físico-matemática já estabelecida [...], refere-se ao conhecimento científico-matemático da Natureza" (MORENTE, 1979).

A Europa iluminista tem seus fundamentos bem definidos na Europa renascentista, do retorno à Antiguidade Clássica, da valorização do homem, em que o jargão socrático "Conhece-te a ti mesmo" é retomado. Novamente Sócrates, e não por acaso, uma vez que, logo de início, foi estabelecida aqui uma relação entre ele e Kant, ao citá-los como dois grandes "divisores de água" na Filosofia. O Iluminismo, ou Era das Luzes, como também ficou conhecido, desabrochou em uma Europa marcada por grandes transformações sociopolíticas, na qual a França fora uma das protagonistas. Os pensadores iluministas franceses se autodenominavam "les philosophes", muitos deles burgueses e boêmios, mas todos, sem exceção, cidadãos da "república das letras" - espírito que se generalizou em clubes, cafés e salões literários. "Les philosophes tornam-se sinônimo de subversão e pornografia por defender e praticar a liberdade de pensamento, de que resulta uma nova concepção do mundo e do homem" (ABRÃO, 2004). Dentre eles estavam Voltaire, Diderot, a d'Alembert, Montesquieu, Rousseau e a Condorcet.

O Iluminismo alemão não precisou de uma "revolução" como a "francesa", no entanto, a futura Alemanha, que nada mais era, naquela época, que um aglomerado de Estados, que via sua língua sendo preterida ao latim ou ao francês, consequentemente não ficou incólume a uma revisão geral de valores, ambiente ideal para uma "crítica radical", até mesmo da própria razão, que recebeu o nome de Aufklärung. É nesse contexto que Kant, então, propõe que a razão "estabeleça um tribunal que, ao mesmo tempo que assegure suas legítimas aspirações, rechace todas as que sejam infundadas, e não o fazendo mediante arbitrariedades, mas segundo suas leis imutáveis".

O idealismo transcendental kantiano, como ficou conhecida a filosofia do pensador de Königsberg, não é de fácil compreensão, mas pode ser estudado em suas duas grandes obras: Crítica da Razão Pura (1781) e Crítica da Razão Prática (1788). Conta-se que Herz, depois de receber o manuscrito da Crítica das mãos do próprio Kant, o teria devolvido, sem lê-lo por completo, dizendo temer "ficar louco" se o fizesse "Kant é a última pessoa do mundo que devemos ler sobre Kant" (DURANT, 2000). Essa dificuldade em lê-lo se deve a que, ao elaborar sua estratégia de ataque aos critérios do conhecimento, o filósofo, antevendo os ataques que também receberia de seus oponentes, decide, perspicazmente, que deveria "falar outra língua", tecer suas ideias em uma linguagem própria, de difícil compreensão vulgar. Assim, para combatê-lo, é necessário subir às suas alturas, onde seu contestador terá de escolher entre "respirar ou lutar", "Aproximemo-nos dele por desvios e com cautela, começando a uma distância segura e respeitosa; [...] e depois avancemos tateando em direção àquele sutil centro em que o mais difícil dos filósofos guarda o seu segredo e o seu tesouro".

Em 1784, em um pequeno artigo, intitulado Beantwortung der frage: Was ist Aufklärung? (Resposta à pergunta: O que é o esclarecimento?), Kant diz: "Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento". Como se pode ver, conquistar a maioridade é uma questão que está nas mãos do próprio indivíduo, na medida em que se assume como "livre, autônomo e racional".

Se o Iluminismo buscou o esclarecimento do ser humano, a antropologia kantiana caiu, por assim dizer, como uma luva nesse movimento sociopolítico, artístico-cultural, da burguesia europeia. A indagação "O que é o homem?", em Kant, encontraria resposta a partir de três outras questões: "O que se pode saber?", "O que se deve fazer?" e "O que é lícito que se espere?". Kant considerava "escandaloso" que em mais de dois mil anos de pensamento filosófico nenhum pensador tenha sido capaz de "realmente" provar se há ou não "um mundo lá fora", externo a nós. Destarte, lançou- -se a dar uma solução ao "impasse" estabelecido entre racionalistas, como Descartes, e ceticistas, como Hume. Na filosofia racionalista de Leibniz, reaparecera a teoria dos "dois mundos", enquanto isso, os empiristas se empenhavam em criticar as pretensões da metafísica. Para dar conta desses mundos, aparentemente tão díspares, e dessas filosofias, presumivelmente irreconciliáveis, o sábio de Königsberg vai distinguir 3 modos de saber: a sensibilidade (Sinnlichkeit), o entendimento discursivo (Verstand) e a razão (Vernunft ). A partir daí é que ele destrincha, em sua Crítica da Razão Pura, as possibilidades do conhecimento e o fundamento da sua validade. "O espaço e o tempo separam- -nos da realidade das coisas em si. A sensibilidade limita-se a apresentar fenômenos ao entendimento, coisas que são 'deformadas' ou elaboradas por essa sensibilidade" (MARÍAS, 1978). Em outras palavras: tudo o que chegamos a conhecer não passa de uma "construção" forjada por nossas sensações, uma espécie de "produto artificial", gerado por nossa inexorável submissão ao espaço e ao tempo, portanto, a posteriori; enquanto, o que está para além de nossa percepção sensorial (ou a priori) nos é inacessível. Eis o grande golpe que o filósofo de Königsberg desferiu contra a metafísica que se sustentara até então e à qual dedicaram seu valoroso tempo pensadores desde a Parmênides até Leibniz. Daí a razão de admoestar os pretendentes a metafísicos, dizendo: "É incontornavelmente necessário pôr de lado provisoriamente seu trabalho, considerar tudo o que aconteceu até agora como não acontecido e antes de todas as coisas formular primeiramente a pergunta: se algo como a metafísica é simplesmente possível?".

Porém, se a metafísica clássica fora posta em "seu devido lugar" por Kant, a própria razão também o foi, porquanto foi dito a ela o que pode e o que não pode vir a conhecer. Isso estabelecido, segue, então, o filósofo para a parte prática no campo do conhecimento e escreve a sua Crítica da Razão Prática. Dali emana toda a "ética kantiana", a partir da qual lhe vem o "imperativo categórico", "Age de tal modo que trates a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de todo outro sempre e ao mesmo tempo como um fim e jamais simplesmente como um meio [...]". Kant resgata a antiga tradição socrática quando postula uma máxima que não deixa dúvidas de que o indivíduo "esclarecido" é o mais "apto" a exercer a virtude e praticar o bem. É, então, sob essa nova égide que a Filosofia passará a desenvolver sua teoria do conhecimento, sabendo bem até que ponto a razão humana é capaz de penetrar em certos domínios e empreender ali sua atividade por excelência: conhecer. Também é a partir daí que o homem deverá compreender "o dever", não como obrigação, mas no sentido de "integridade", assumindo-se definitivamente como um ser racional. Essa nova noção de "dever" consiste na passagem do alienum júri (quando o indivíduo age coagido por leis exteriores ou por vontade de outrem) para o suis júri (quando o indivíduo age por uma espécie de vontade ou determinação própria, interior). O conceito de autonomia, em Kant, tem sua base em Rousseau, ele apenas a transferiu do âmbito político para o da moral.

Sendo, como já foi dito, um "divisor de águas" na Filosofia, Kant conquistou adeptos e admiradores, e também críticos ferrenhos. Friedrich W. Nietzsche, por exemplo, provavelmente tendo visto nele algo de muito similar a Sócrates (eis que surge outra vez aquela "ligação"!), tratou de apontar seu "idealismo romântico" como mais uma tentativa de negar os mais viris instintos do homem, impondo-lhe uma moralidade "de fora para dentro", capciosamente travestida de "imperativa", ou seja, inegável e necessária ao agir racional, em direção ao bem que ele deve sempre almejar. Embora tenha declarado que Sócrates fora o instaurador da metafísica no mundo, enquanto Kant é reconhecido como o destruidor dela, Nietzsche dirá que "esse chinês de Königsberg" foi, como todos os outros filósofos antes dele, seduzido pela "santa supremacia da moral" e, assim como Lutero dera sobrevida ao cristianismo, em vez de enterrá-lo, Kant fizera o mesmo com a metafísica, como podemos ver nesse trecho do prefácio de Aurora: "Kant era, justamente, com um tal propósito delirante, o bom filho do seu século, que mais que qualquer outro pode ser denominado de o século do delírio [...]. Também ele foi mordido pela tarântula moral Rousseau, também ele tinha no fundo da alma o pensamento do fanatismo moral [...]. Pode-se talvez [...] lembrar-se de algo aparentado a Lutero, naquele outro grande pessimista [...]". Até mesmo Arthur Schopenhauer, tão influenciado por Kant, ao perceber que sua segunda Crítica resgatava ideias religiosas, como Deus, liberdade e imortalidade (aparentemente destruídas na primeira), atirou: "A virtude de Kant, que a princípio se voltava para a felicidade, perde sua independência mais tarde e estende sua mão pedindo uma gorjeta".

"Kant era, justamente, com um tal propósito delirante, o bom filho
do seu século, que mais que qualquer outro pode ser denominado
de o século do delírio [...]. Também ele foi mordido pela tarântula
moral Rousseau, também ele tinha no fundo da alma o pensamento
do fanatismo moral [...]"

A filosofia kantiana, embora reconhecidamente elevada, complexa e até incompreensível, não se mantém sempre nas alturas ela, em vários momentos, desce à instância dos pobres mortais, quando, apesar de mantidas as características do seu autor, trata questões como a educação, a justiça e a teologia. Em sua obra Sobre a Pedagogia (conjunto de notas retiradas de suas preleções no curso de Pedagogia), Kant vai dizer que o fim último da educação é a liberdade "Deve-se começar a educar a criança pela lei que está dentro dela", propõe. O livro Emílio, de Rousseau, o impressionou de tal forma que Kant, ao dividir seu projeto pedagógico em duas partes a educação física e a educação moral, pautou a primeira em tudo o que lera na obra do pensador francês. Em Kant, a educação deve ter como objetivos a formação do caráter e a conscientização dos deveres do indivíduo para consigo mesmo. Disciplina, instrução, formação e cultura estão na base estrutural da pedagogia kantiana. Prudência e moralidade são as duas características fundamentais daquele que recebeu a devida educação, de forma que saiba e possa viver em sociedade (uma sociedade no estrito sentido do idealismo kantiano, é claro!) "Reformando-se o homem, reforma- se também a sociedade, e eis que surge o perfeito cidadão". Ao que parece, a concepção kantiana de "homem" destoa daquela defendida por Rousseau, do "bom selvagem", uma vez que o francês acusava a sociedade (com seus agressivos processos civilizatórios) pela deturpação do "homem natural" e o alemão primava pela formação cultural do ser humano para seu pleno desenvolvimento como cidadão "A Educação é uma arte, cuja prática necessita ser aperfeiçoada por várias gerações precedentes. Cada geração, de posse dos conhecimentos das gerações precedentes, está mais bem aparelhada para exercer uma educação que desenvolva todas as disposições naturais na justa proporção de conformidade com a finalidade daquelas e, assim, que caminha toda a espécie humana seu destino". Kant pensava no homem, não como "um ex-bom selvagem", mas como um "futuro melhor ser humano".

Embora muitas pessoas tenham a tendência a relacionar moralidade com religião, acreditando erroneamente que sem a religião os valores morais se perderiam, a ética kantiana passa longe de qualquer concepção ou tendência religiosa, da mesma forma que, em seu projeto pedagógico (do qual acabamos de tratar), uma educação ou formação religiosa é incogitável. Nem tanto porque o Iluminismo tenha sido uma proposta de domínio do pensamento racional sobre o teológico, mas simplesmente porque Deus, alma, reencarnação e imortalidade estão para Kant naquele patamar metafísico, no qual todas as lucubrações não passam de especulações mentais vazias de sentido racional, uma vez que, como o próprio Kant vai dizer, nossa razão jamais terá acesso a eles. Logo no Prefácio da 1ª edição (1793) de sua obra A Religião nos Limites da Simples Razão, lemos: "A moral que é baseada no conceito do homem, enquanto ser livre que por isso mesmo se obriga, por sua razão, a leis incondicionais, não tem necessidade nem da ideia de um ser diferente, superior a ele para conhecer seu dever, nem de outro móvel a não ser a lei pela qual o observa", donde percebe-se claramente como o filósofo desvincula Deus e a Religião em geral da questão moral do homem.

"O nosso filósofo [...] sentiu, à medida que envelhecia, uma grande
vontade de preservar para ele e o mundo pelo menos os pontos
essenciais da fé tão profundamente inculcada nele por sua mãe" (DURANT, 2000)

Trazendo de volta, outra vez, aquele link proposto desde o início entre Kant e Sócrates, não seria descabido dizer que a postura ética do filósofo ateniense diante da sentença que lhe foi proferida, com sua recusa em fugir de Atenas, como sugerido por seus amigos e discípulos, para livrar-se da morte por envenenamento, é sem dúvida a postura moral defendida por Kant.

Embora tendo sido criado por uma mãe extremamente religiosa e sob seus rigores devocionais, o pequeno Immanuel cresceu avesso à Igreja e a qualquer credo religioso. No entanto, segundo alguns autores, seu fervor religioso apenas estava envolto e escondido dentro de um coração racional "O nosso filósofo [...] sentiu, à medida que envelhecia, uma grande vontade de preservar para ele e o mundo pelo menos os pontos essenciais da fé tão profundamente inculcada nele por sua mãe" (DURANT, 2000). Não devemos esquecer, no entanto, que as questões de fé, como Deus e a alma imortal, por exemplo, são um prato cheio para a metafísica a primeira vítima do idealismo transcendental kantiano "Por exemplo, podemos desejar afirmar que Deus é a causa do mundo, mas causa e efeito é outro conceito a priori, como substância, que Kant acreditava ser válido apenas para o mundo percebido, mas não para as coisas em si. Então, a existência de Deus (considerado, como geralmente é, um ser independente do mundo conhecido) não é algo que possa ser conhecido" (O Livro da Filosofia, Ed. Globo, 2011).

Em A Religião nos Limites da Simples Razão, Kant propõe um culto e um comportamento religioso estritamente racional. Assim, ir à igreja, tanto quanto ler um livro considerado sagrado, deveria ser uma atividade simples que, no entanto, lembrasse ao devoto que o divino que ali está sendo cultuado é aquele que representa nele mesmo (o fiel) a mais alta moralidade, do contrário, tal ato poderia preencher seu coração, (como é sabido que o faz), mas, em contrapartida, serviria de testemunho de uma mente vazia, irracional "[...] a pura fé literal corrompe mais do que melhora o verdadeiro pensamento religioso". Provavelmente nenhuma das igrejas e credos que conhecemos atualmente escaparia à crítica movida pelo nosso nobre idealista à religião. No entanto, é muito provável também que ele admitisse, ainda que a contragosto, o quanto elas são "um mal necessário", considerando-se o que ele disse: "Só existe uma religião (verdadeira), mas podem existir muitas formas de crenças. Pode-se acrescentar que nas diversas igrejas que se separam umas das outras por causa da diversidade de seu gênero de crença, pode-se, no entanto, encontrar uma só e mesma religião", porém, acrescentou: "mas somente a pura fé religiosa, baseada inteiramente na razão, pode ser reconhecida necessária, como a única, por conseguinte, que se distingue a verdadeira igreja". Essas declarações do filósofo não foram bem acolhidas pelo recém-chegado ao trono da Prússia, a Frederico II, que era contrário às medidas iluministas do seu antecessor (Frederico, o Grande), e proibiu o pensador de se pronunciar sobre religião, no que foi prontamente atendido, até sua morte, em 1797.

O imperativo categórico kantiano não se pretende uma "máxima ecumenicorreligiosa", mas caberia muito bem em qualquer dos Evangelhos, sem destoar das pregações do Cristo "Não julgueis, e não sereis julgados. Porque do mesmo modo que julgardes, sereis também vós julgados e, com a medida com que tiverdes medido, também vós sereis medidos" (Mateus, 7:1-2). Kant acreditava fielmente na capacidade do ser humano de dominar seus instintos mais perversos através da assunção de sua racionalidade. Ele tentou a todo custo, em sua obra, deixar isso bem claro "[...] a malignidade da natureza humana não deve, na verdade, ser chamada de maldade, se esta palavra for tomada em sentido rigoroso, isto é, como intenção (princípio subjetivo das máximas) de admitir o mal enquanto mal como motivo em sua máxima (pois isso seria uma intenção diabólica), mas, antes, perversão do coração, o qual segundo a consequência, é designado então igualmente de má vontade. Esta não é incompatível com uma vontade em geral boa: provém da fragilidade da natureza humana [..]". Se isso por si só não bastar para fundamentar o argumento que acabo de levantar, que tal, então: "Toda má ação, quando procuramos sua origem, deve ser considerada como se o homem tivesse chegado a isso diretamente do estado de inocência"? Com isso ele pretendia dizer: "Se estivesse em pleno usufruto de sua autonomia, de sua liberdade e de sua racionalidade, jamais cometeria um ato infame, ainda que forças volitivas em seu espírito tentassem movê-lo a tal!". Alguns comentadores do filósofo e de sua "máxima moral" perceberam também a proximidade que há entre ela e o ideal religioso: "Vivamos de acordo com este princípio, e em breve iremos criar uma comunidade ideal de seres racionais; para criá-la, precisamos apenas agir como se já pertencêssemos a ela; [...] só assim poderemos deixar de ser animais e começar a ser deuses" (DURANT, 2000).

Sim! O idealismo kantiano, visto por nós, homens do século 21, que sabemos perfeitamente que aquelas luzes do século 18 não foram capazes de iluminar suficientemente as mentes e os corações dos homens, de modo a evitar duas a Grandes Guerras, no século 20, e toda uma série de outras pequenas e grandes calamidades perpetradas pela malignidade humana, sim! O idealismo kantiano pode ser chamado de utópico. Mas não esqueçamos que "utopia" não significa apenas o lugar impossível, irreal. Ela também é o "lugar dos sonhos", e por que, então, não poderia ser também "o lugar dos nossos objetivos"? Um homem pequeno e franzino viveu toda sua vida sem nunca tirar o pé de sua cidadenatal. Influenciou dali mesmo outros homens que, como ele, ousaram edificar um mundo melhor. Destruiu os pilares de uma pseudociência, chamada metafísica, desconstruindo assim os argumentos de nobres pensadores de mais de 20 séculos. Sem ser religioso, viveu dentro da mais estrita moralidade e no respeito ao seu semelhante. Morreu aos 79 anos, sem ter casado, sem ter filhos, tão simples quanto veio ao mundo, contudo, ciente do "dever" cumprido. Se essa história é mesmo, como os anais atestam, verídica, é melhor que alguém entre nós, homens do século 21, assuma imperativa e categoricamente a nobre tarefa de dar uma resposta a esta pergunta: O que, afinal, é utopia?

REFERÊNCIAS

ABRÃO, Bernadette Siqueira (Org.), A História da Filosofia, Nova Cultural, 2004;

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia, São Paulo: Ática, 1998;

DURANT, Will, A História da Filosofia, Ed. Nova Cultural, 2000;

KANT, Immanuel, A Religião nos Limites da Simples Razão, Ed. Escala, 2008;

MARÍAS, Julián, História da Filosofia. Porto: Edições Sousa & Almeida, 4ª edição, 1978;

MORENTE, Manuel García. Fundamentos de Filosofia. São Paulo: Editora Mestre Jou, 7ª edição, 1979; NIETZSCHE, Friedrich W., Aurora Ed. Escala, 2007.

* Jaya Hari Das é filósofo, criador da Terapia Hari, diretor/fundador do MOFICUSHINTH. E-mail: moficushinth@yahoo.com.br

sexta-feira, 25 de maio de 2012

ABRINDO CAMINHOS ATÉ NIETZSCHE (Parte IV)

NIETZSCHE: AMORES, AMIGOS E SOLIDÃO


Como filósofo, Nietzsche não foi compreendido pelos seus contemporâneos; como homem, foi um solitário, sem amores correspondidos e com poucos amigos. Essa solidão física e intelectual é outro traço marcante na vida do filósofo que não deve ser esquecida, pois também ela direciona sua obra e está presente nela, tanto nos momentos mais poéticos quanto nos mais agressivos.

A jovem finlandesa, Lou Andréas Salomé foi pedida em casamento, mas recusou, queria apenas ser sua amiga e, quem sabe, uma espécie de discípula. Porém, nem isso aconteceu, pois, em breve, haveriam de se afastar definitivamente. Ela preferiu cair nos braços de Paul Rée, um amigo comum, e Nietzsche, desiludido, desandou a escrever aforismos contra as mulheres. O barão Heirinch von Stein fora para Nietzsche uma esperança de alguém que, ainda em sua época, compreendesse o seu “Zaratustra”. No entanto, von Stein veio a falecer muito cedo, levando consigo tal esperança, o que amargurou profundamente o filósofo. O intelectual, Paul Lanzky, lera “Assim falou Zaratustra” e escrevera um artigo num jornal de Leipzig e na Revista Européia de Florence. Dirigiu-se a Nietzsche, chamando-o de “mestre”, ao que o filósofo respondeu: “Sois o primeiro que me trata dessa maneira”.

Seus livros não eram lidos nem mesmo por seus amigos. Erwin Rohde, para quem o filósofo enviara uma de suas obras, jamais agradeceu o envio nem respondeu à carta que Nietzsche lhe escreveu. A primeira edição de sua obra-prima, “Assim falou Zaratustra”, vendeu apenas 40 exemplares; sete foram dados de presente, só uma pessoa agradeceu e ninguém teceu um único elogio.

Nietzsche apaixonou-se pela música de Richard Wagner, chegou a dizer, sobre a obra do compositor: “Bayreuth significa, para nós, o sacramento matutino no dia da batalha”. Enviou a ele o seu “Humano, Demasiado Humano” e recebeu em troca o libreto “Parsifal”. Porém, em breve, veria na obra de Wagner “a decadência”, todo “o niilismo” e adulação ao cristianismo. Então, rompeu definitivamente com o compositor.

Poucas vezes o filósofo teve a satisfação de ler algo positivo sobre seus escritos, como se deu com o “admirável” ensaio de Georg Brandes, “a mais conclusiva de todas as análises críticas sobre sua obra, então ainda pouco conhecida”. Numa carta a Brandes, datada de 2 de dezembro de 1887, Nietzsche escrevera: “Uma filosofia como a minha é igual a um túmulo: não se vive mais com ela”. Dentre os comentadores, Eugen Fink alfineta que “Nietzsche mais dissimulou do que publicou sua filosofia”; Martin Heidegger, que “é nos escritos póstumos que será preciso buscar a autêntica filosofia de Nietzsche”; e Muller-Lauter nos faz lembrar que o próprio filósofo se compreendia “como o mais escondido de todos os ocultos”.

É através de Zaratustra que Nietzsche supera essa falta de amigos, de amores e de comentadores de sua obra. Ele cria seus próprios amigos, já que não os tem de verdade. “Eu vos conjuro, meus irmãos, continuai fiéis à Terra e não acrediteis naqueles que vos falam de esperanças supraterrestres! Envenenadores eles são, quer saibam, quer não”. E, talvez, pensando em si mesmo: “Ó solitários de hoje, ó vós que viveis separados, um dia sereis um povo; de vós, que escolhestes a vós mesmos, nascerá um povo escolhido; e dele o super-homem”.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

ABRINDO CAMINHOS ATÉ NIETZSCHE (Parte III)

NIETZSCHE E A EUROPA DO SÉCULO XIX

Para melhor compreensão da filosofia nietzschiana, é necessário despojar-se de algumas concepções e valores culturais e religiosos, pois, de uma forma ou de outra, foram esses os atacados por esse filósofo. Isso não significa que o estudante deva abdicar de suas convicções ou ignorar seus valores em definitivo, não! Significa que seus valores e convicções não devem se impor aos temas e pontos estudados, sob pena de este estudo se tornar um embate de valores e convicções, o que não será nada proveitoso. No decorrer desta série, a maior compreensão dessa filosofia abrirá horizontes e perspectivas sobre seus próprios valores e convicções, de forma natural e proveitosa!

Compreender o universo nietzschiano é mergulhar na solidão, na doença e no contexto historicocultural do filósofo. Nenhum desses três elementos pode ser considerado isoladamente ou mesmo deixado de lado. Outro fator importante é manter sempre uma análise interpretativa e psicológica direcionada para os conceitos e representações do autor. Assim, um passeio pela História, mais precisamente pela Europa do século XIX, nos mostrará o contexto em que surge e vive nosso filósofo.

O excerto abaixo foi retirado de “Nietzsche e sua época”, publicado na revista Discutindo Filosofia Especial Ano 1 Nº1 (por uma questão de objetividade, clareza e espaço, os textos aqui apresentados poderão sofrer cortes e adaptações, sem prejuízo de sua informação):

“Nenhuma filosofia surge, por assim dizer, do nada. Intimamente ligada às circunstâncias de seu aparecimento, bem como aos pontos de vista que a introduziram, a Filosofia nietzschiana foi também criada em algum momento e em algum lugar.
A filosofia de Nietzsche abriga determinados valores e decorre de uma dada avaliação de seu tempo. [...] Comprometido com a crítica de nossos supremos juízos de valor, [Nietzsche] acreditava que o estudo das relações sociais só poderia adquirir o ápice de seu conteúdo com uma investigação retrospectiva das diversas morais que marcaram a História.
Avessa às tendências ideológicas dominantes na segunda metade do século 19, a filosofia de Nietzsche surgiu e amadureceu em contraponto aos movimentos que se insinuavam pela Europa adentro e, em especial, pelas janelas do mundo germânico – a unificação alemã industrial e a militarização da sociedade germânica”.

A Europa vivia um momento de reestruturação geopolítica e, consequentemente, a Alemanha, também. O filósofo, então, lança seu olhar sobre os acontecimentos e valores culturais de sua época, tecendo ali sua filosofia de contraposição. Aí, logo se vê que ele se tornará uma pedra no sapato do convencionalismo e do tradicionalismo, em vista de que percebe que “o valorar errado levou toda a Europa a um viver errado”. Esse papel de intérprete crítico e psicológico do seu tempo e do seu lugar exigirá dele que lance mão de novos valores e representações, sob pena de sucumbir às mesmas “velhas verdades e convicções” que vitimaram seus contemporâneos.

O trecho que vem a seguir foi extraído do meu artigo “O Crepúsculo dos Sonhos”, publicado pela Editora Escala em Coleção Guias de Filosofia – Nietzsche Vol. II:

“Antes mesmo que a Europa fosse o palco das duas Grandes Guerras, Nietzsche analisava a desilusão e a falta de esperança na vida da sociedade européia.
Na primeira metade do século 19, a Europa estava mergulhada em decepção e pessimismo. [...] O continente europeu tornara-se uma imensidão de miséria e sujeira, após o furacão chamado “Napoleão”. Nietzsche fora beber no realismo amargo (para muitos, no pessimismo de Arthur Schopenhauer). Era fácil perceber naqueles dias que a satisfação, ou felicidade, era mais incomum ou estranha à vida do que a dor e o sofrimento”.

A preocupação da Filosofia com os conflitos interiores e exteriores do homem são, como se sabe, os fomentadores do surgimento da Psicologia e da Sociologia. As guerras entre povos e nações, os conflitos políticos, a desagregação social, a submissão da razão à fé serão para Nietzsche a matéria-prima de sua nova filosofia.

“No limiar do pensamento contemporâneo, a filosofia enfrenta um desafio crucial: o questionamento do valor absoluto que se atribuía aos critérios que serviam como base à civilização ocidental. Com Nietzsche, começa-se a expor a fragilidade das certezas seculares” (Bernadette Siqueira Abrão).

Ler com atenção a obra de Friedrich W. Nietzsche nos fará entender o que seu papel como filósofo representou para a Europa do século XIX e como sua obra iria influenciar a cultura e outros pensadores do início do século XX.

segunda-feira, 30 de abril de 2012

ABRINDO CAMINHOS ATÉ NIETZSCHE (Parte II)

ALGUMAS PALAVRAS SOBRE NIETZSCHE

Em 15 de outubro de 1844, nascia em uma casa pastoral de um vilarejo de Röecken, na Alemanha, Friedrich Wilhelm Nietzsche, filho de Karl Ludwig Nietzsche, pastor luterano e Franziska Oehler. Descendente de uma família de pastores luteranos (seu avô, Friedrich August Ludwig Nietzsche, era pastor e sua mãe também era filha de um pastor luterano), não obstante, esse legado pastoral, assim como sua hereditariedade germânica, em nada seria o traço marcante da vida do futuro filósofo.

A morte do pai (cinco anos após seu nascimento) e a do irmão logo depois deixaram marcas indeléveis na infância do pequeno Friedrich. “Privado do seu melhor amigo (o pai), sentia-se preterido. Se o mundo é regido pela potência do Bem, como explicar o acontecido? Malvadez divina? Punição?”. Viúva e recebendo uma mísera pensão, insuficiente para a manutenção da família, sua mãe resolve partir com a família (ou o que sobrou dela) para Naumburg, onde poderia contar a ajuda de amigos e parentes.

Em Naumburg, Nietzsche foi educado em casa, aos cuidados da própria mãe. Já entre 1850 e 1858, ele freqüenta várias escolas, onde era visto pelos colegas como um menino introvertido e estranho, ao qual apelidaram de “o pequeno pastor”. Mais tarde, ao ganhar da mãe um piano, passou a ter aulas de música na própria casa. A partir de então, sua vida pareceu ficar mais alegre – dedicava-se à música e à poesia, conquistava amigos e se divertia, e também gostava muito de literatura. Mas essa alegria foi interrompida mais uma vez pela experiência da doença e da morte – morreram sua tia Auguste e sua avó paterna Erdmuthe. Também, ele foi acometido pelas primeiras crises de dores de cabeça e nos olhos, por essa razão teria pedido licença escolar.

Aos 14 anos ganhou uma bolsa de estudos para o Colégio Real de Pforta (internato de elite, onde grandes nomes da cultura alemã, como Fichte, estudaram). Ali conheceu a solidão, a distância e a saudade da mãe e da irmã – o regimento escolar só permitia uma saída de quatro horas, aos domingos. Para aplacar essa solidão atirava-se à composição musical e à leitura de Homero e Virgílio. Em Pforta, Nietzsche recebeu sólida formação humanista, conheceu os grandes autores da Antiguidade, por outro lado, sua saúde começava a dar sinais de fragilidade. O relatório médico do ginásio atesta que as congestões na cabeça, o reumatismo e os distúrbios oculares estavam se tornando cada vez mais constantes.

Na década de 1860, conhece a obra A Essência do Cristianismo, do filósofo Ludwig Feuerbach. A partir daí, se manifestam suas primeiras reações contrárias ao cristianismo, que o afastarão da vocação familiar para a Teologia. Em 1864, matricula-se em Teologia e Filologia na Universidade de Bonn, onde assiste às aulas de Ritschl (eminente helenista, que aprimorou os estudos e abriu novos caminhos para a Filologia Clássica. Graças a Ritschl, Nietzsche descobre sua vocação para a Filologia Clássica e, em 1865, segue para Leipzig, para continuar seus estudos com Ritschl. Nesssa época, o filósofo (ainda filólogo) desfrutou de certa felicidade, equilíbrio e saúde; seu trabalho foi profícuo e coroado de êxito: proferiu várias conferências e escreveu inúmeras resenhas. Foi em Leipzig que leu os dois volumes de O Mundo como Vontade e Representação, de Arthur Schopenhauer (seu primeiro contato real com a Filosofia); também por essa época que veio a conhecer a obra de Richard Wagner. Tanto Schopenhauer quanto Wagner tornam-se assim dois luzeiros de inspiração para a Filosofia nascente em Nietzsche. Por meio do mestre Ritschl, Nietzsche é então convidado a lecionar na Universidade da Basiléia, na Suíça.

Ao mesmo tempo em que se ocupava com ponderações sobre os gregos do período trágico, em 1870, obteve licença para participar como enfermeiro na Guerra Franco-Prussiana. Embora breves, as provações da guerra atingiram-lhe profundamente, causando-lhe crises de disenteria e icterícia. No campo de batalha, assistira aos horrores da destruição em massa: eram tantos os feridos que mal podiam ser medicados e morriam aos milhares pelos ferimentos ou por febre infecciosa.

A doença produziu uma significativa ruptura na vida do filósofo – ele teve de deixar para trás amigos, família, suas ocupações; tudo distanciou-se dele, e ele de tudo. O rompimento desses laços o empurrou outra vez para a solidão – só que desta vez profunda e definitivamente. Transformou-se, pouco a pouco, em seu próprio médico, prescrevendo a si mesmo regimes alimentares e valendo-se de diferentes drogas.Também tornou-se, na prática, seu próprio editor, porém, não tendo retorno, só gastos, empobreceu de modo progressivo.

Vivia de sua própria filosofia – errante e solitário. Nem a solidão, nem a enfermidade, nem a vida errante conseguem distanciá-lo de seu trabalho intelectual. Entre1883 e 1885, escreve aquela que seria sua obra-prima: Assim falava Zaratustra. A rotina da elaboração dos textos comprometeu terrivelmente sua saúde já debilitada. A partir daí, pode-se ver claramente como a vida e o corpo, a saúde e a doença, adquirem um valor central em sua crítica da moralidade cristã. Algumas vozes se levantaram louvando suas obras, mas eram muito dispersas e tardias, não conseguiam acrescentar algo de bom àquela solidão desamparada e àquela saúde atormentada.

Em 1888, o filósofo apresentou graves sinais de desequilíbrio mental. Em janeiro de 1889, sob forte tensão psíquica, foi visto abraçando um animal para protegê-lo das chicotadas do cocheiro, em plena praça de Turim. Nos dias subsequentes, escreveu várias cartas a amigos, cada uma delas assinada com um nome diferente – às vezes, Dionísio. Tomado por convulsões, passava da agressividade à doçura. O Dr. Willi diagnosticou nele “paralisia progressiva”. Foi internado pela mãe, dias depois, na clínica universitária de doenças nervosas em Jena. Quando saiu de lá, foi morar com a mãe em Naumburg. Entre 1891 e 1894, sua saúde só piora e muito rapidamente. Em 1892 já não reconhece os amigos que o visitam e tem repetidos acessos de fúria. Em 1893 sofre uma paralisia da espinha dorsal e é obrigado ficar numa cadeira de rodas. Com a morte de sua mãe, em 1897, Nietzsche fica em Weimar, sob os cuidados da irmã Elizabeth, que havia retornado do Paraguai, após sete anos de uma empreitada frustrada com o marido.

Nosso filósofo recebe o definitivo alívio de seu sofrimento por volta do meio-dia de sábado, 25 de agosto de 1900. Enfim... “Raramente um homem pagou um preço tão alto pelo gênio” (Will Durant).

quarta-feira, 25 de abril de 2012

ABRINDO CAMINHOS ATÉ NIETZSCHE (Parte I)

LITERATURA OU FILOSOFIA?

A literatura e a filosofia se unem, mas não se confundem. Para a literatura são necessários o escritor e o leitor – o primeiro deve ter habilidade na escrita, conhecimento da língua e das normas gramaticais dela, e, muitas vezes, boa dose de imaginação ou criatividade; o segundo deve ser capaz ler e compreender, com certa sensibilidade, e também precisa dominar a língua em questão. À filosofia são necessários o pensador/escritor e o pensador/leitor – o primeiro também deve ter habilidade na escrita e domínio da língua e da gramática, mas, além disso, deve ter raciocínio lógico, visão crítica da realidade e capacidade de argumentação; o segundo, do mesmo modo, também deve ser capaz de ler e compreender, porém, acima de tudo, deve ser capaz de apreender e aplicar na vida, se for possível, o conhecimento que se desprende do que lê.

Alguns filósofos possuem obras que podem ser lidas apenas como literatura. Nesse caso, o leitor utiliza-se delas como entretenimento, às vezes, fazendo anotações, para serem utilizadas, posteriormente, como citações, que, de certa forma, podem conferir a ele certo grau de “erudição”. Outros jamais poderão ser lidos como entretenimento, devido à rigidez do estilo e à exigência de um raciocínio atuante ao longo de toda a obra.

A obra de Friedrich W. Nietzsche encontra-se no limiar desses dois casos e, eventualmente, um livro ou outro, se isola apenas dentro de um desses casos. Quem optar por ler “Assim falou Zaratustra”, por exemplo, terá em suas mãos um bom livro de literatura, pois nele há uma trajetória narrativa repleta de personagens fictícios, típica do imaginário de um literato; porém, por outro lado, quem optar por ler “A Gaia Ciência” terá que ter a habilidade de interpretação filosófica e, além disso, um conhecimento prévio da própria filosofia do autor, para evitar que tome a liberdade de fazer suas próprias interpretações, que, certamente, nada terão a ver com a obra.

Nesse sentido, proponho que o pretenso leitor de Nietzsche, em primeiro lugar, esteja ciente da sua própria intenção ao decidir-se por ler esse filósofo, isto é, saber de antemão se ele está em busca de literatura ou de filosofia, e, em segundo, mas não menos importante, em caso de buscar por filosofia, assegurar-se de que tem, ou pretende desenvolver, a habilidade para tanto. Devo acrescentar que em nenhum dos casos há demérito para o leitor, ou mesmo para a obra. Como disse anteriormente, é puramente “opcional”, pois, em ambos os casos, tomadas essas precauções, indubitavelmente, cada leitor alcança o seu objetivo.

Convido, portanto, o leitor deste blog, a partir deste artigo, a acompanhar minhas considerações sobre a obra de Nietzsche, no intuito de facilitar sua compreensão e colaborar na apreensão das principais ideias levantadas em cada obra, que vir a ser analisada. Tendo a pretensão de considerar-me suficientemente competente para tanto, uma vez que, muitas são as razões que me fazem pensar assim, a saber: 1)leio sua obra há mais de três décadas; 2)graduei em Filosofia defendendo uma monografia embasada nela; 3)tenho vários artigos sobre ela, publicados em revistas nacionais e em vários blogs espalhados Internet afora; e, 4)acima de tudo, por ser também eu um filósofo, me identifico com boa parte do que ele deixou escrito, à qual já tive acesso. Isso explicado, sigamos!

Apresento-o como uma ferramenta útil e não como uma chave que abre uma espécie de "segredo", sem a qual o leitor não teria sucesso. Essa “ferramenta”, como escrevi no título deste texto, pretende "abrir caminhos até Nietzsche". Então, que venham muitos através dele, é o que sinceramente espero!


Nota: Espero contar com professores, filósofos, estudiosos e colegas na correção de algum deslize, de qualquer ordem, que eu venha a cometer, pois, certamente serão de grande contribuição para o presente trabalho.
Muitíssimo obrigado, desde já, a todos!

quinta-feira, 15 de março de 2012

ENTREVISTA À SEXTO SENTIDO (Na íntegra)

ESTAMOS SÓS NO UNIVERSO?

SS- Considerando que somente na Via Láctea podem existir cerca de 2 bilhões de planetas parecidos com a Terra, qual a possibilidade de estarmos sós no universo?

JHD- Isso depende muito de qual tipo de vida, ou de seres, pensamos encontrar. Estamos presos à ideia de que a vida só é possível onde há água e elementos como hidrogênio, oxigênio e gás carbônico. Além disso, só conseguimos imaginar seres antropomórficos. Creio que, para considerarmos seriamente tal possibilidade, é preciso avançar mais um pouco, pois se “há muitas moradas” dentro do que denominamos “a criação de Deus”, é possível que haja também moradores – seres com características bastante peculiares, para os quais não possuímos nem sentidos, nem instrumentos, capazes de detectar. Pelo menos, ainda não. Se queremos realmente chegar a esse conhecimento, precisamos estar abertos a novas possibilidades e não fechados na convicção que “tem de ser assim”.

SS- Mesmo considerando todas as provas que ciência já demonstrou, de que há possibilidade de existir vida em outros mundos, é possível crer que essa vida possa ser inteligente e ser semelhante a nós?

JHD- Bem, se a pergunta é “é possível crer?”, responderei que “sim”. Não queremos apenas que exista um Deus racional e inteligente como supomos, queremos também que esse Deus tenha espalhado essa racionalidade e inteligência por todo o Universo. Isso justificaria nossos devaneios sobre invasões alienígenas, destruição da humanidade por uma raça superior vinda do espaço e coisas desse tipo. Também acalentaria nosso sonho de enviar ou deixar mensagens para os habitantes das estrelas, de forma a comunicar nossas experiências e falar sobre quem somos ou quem fomos. Essa temerosa crença, ao mesmo tempo em que nos põe em alerta para o perigo que é ter vizinhos que pensam tão ambiciosamente quanto pensamos, também nos põe em comunhão com todo o Universo, acolhendo como irmãos esses possíveis seres de outros planetas. Toda crença fala sempre mais de uma necessidade do que de um desejo. Temos necessidade de que “assim seja”, e não doutra forma.

SS- Durante anos, cientistas e teólogos tem defendido que a vida é uma exclusividade da Terra. Isso hoje já está em dúvida, contudo, ainda existem muitos partidários dessa tese, visto que até o momento só existem possibilidades, mas não provas científicas. Mas pensar dessa forma - a vida é somente terrestre - não soa egoísta?

JHD- Em meu livro “O Governante das Estrelas – Da Materialidade do Eterno” (ainda não publicado), dedico o capítulo “A Reencarnação e os Mundos Possíveis” a esta questão. É de lá que trago essas comparações que faço entre a crença em extraterrestres e a crença religiosa. Enquanto a crença inventa, digamos assim, condições de possibilidade para o inusitado, a ciência cria empecilhos para o improvável. Portanto, esse suposto egoísmo é cientificamente justificável. A ciência quer saber se há vida fora da Terra e, uma vez que ela quer saber, é necessário que, de certa forma, também creia que haja, no entanto, a racionalidade imposta à pesquisa científica não permite que essa crença seja mais do que uma mera propulsora da busca pelo desconhecido. Assim, até prova em contrário, dirá a ciência: “só há vida neste pequeno recanto do Universo”. Não obstante, quando olhamos para aqueles pequenos pontos luminosos na imensa escuridão do céu, alguma coisa nos convoca a imaginar se não estaríamos também nós sendo observados de lá. Penso que a vida é teimosa demais para ter se fixado num único ponto da vastidão do Universo.

SS- A visão mais comum de vida fora da Terra foca nos contatos com seres alienígenas, alimentado pelas fantasias da ficção científica. Seria esta uma visão correta de vida fora da Terra?

JHD- A ficção científica está para a verdade assim como o mito está para a racionalidade: é útil até certo ponto e, a partir dali, deve ser abandonada. Sabemos que livros e filmes de ficção científica inspiraram muitos artefatos usados na exploração espacial e, de certa forma, propiciaram avanços científicos, pois imaginação e curiosidade são fundamentais para o espírito científico, mas para por aí sua utilidade. Exigir que seres extraterrestres se pareçam com anfíbios ou sejam uma espécie de homens lindos e reluzentes, a meu ver, é um absurdo! Precisamos ser mais sérios e menos fantasiosos, se quisermos avançar nessas pesquisas. Não há necessidade de pressa em inventar corpos e rostos não-humanos que tenham como modelo as formas humanas reconhecidas. Sabemos que os seres da Terra desenvolveram esta ou aquela característica por necessidade e adequação às condições particulares de seu habitat natural. Penso que, se aplicarmos esse mesmo critério para os possíveis seres de outros planetas, teremos mais chance de conhecer a verdade dos fatos.

SS- Se existirem seres evoluídos em outros mundos, e se eles criaram uma civilização igual a nossa - nem entraremos na questão de “mais avançada” - como as religiões podem explicar as questões da evolução e da “salvação” dos terrestres e dos extraterrestres?

JHD- O que essa questão tem de interessante, tem de polêmica também. No tocante à evolução, não vejo empecilhos em aceitarmos que tudo está em constante movimento de melhoramento, ou de adaptação, como diria Darwin. Evoluir é próprio de tudo que houver no Universo – se há seres em outros planetas, fico bastante à vontade para dizer que devem passar por processos evolutivos semelhantes ao nosso. Por outro lado, nas questões que dizem respeito às religiões, como a salvação, por exemplo, não encontraremos muito apoio para argumentações. Toda religião é retrógrada e obtusa; está presa à letra morta de suas Escrituras e fechada em suas doutrinas, não dando lugar para o avanço do conhecimento. A ideia de salvação há muito já deveria ser um absurdo para nós terráqueos, que dizer então para extraterrestres? A ciência precisa de critérios, não de censuras, ainda mais de doutrinas religiosas que, se pudessem, manteriam toda a humanidade na Idade da Pedra. A questão da “salvação” é em si mesma o maior dos absurdos já produzidos pela incapacidade do homem de admitir seus próprios erros, não como pecados, mas como próprios da sua natureza de conhecedor e explorador das possibilidades da vida. Que um homem magnânimo e extemporâneo como Jesus Cristo é um exemplo de sabedoria, autoconfiança e determinação não tenho como negar. Daí a construir uma doutrina religiosa que torne o homem opróbrio de si mesmo, e deixar que ela predomine durante mais de vinte séculos, transforma o que tinha tudo para ser um néctar no mais letal veneno.

SS- É muito comum, entre vários grupos, a ideia de que discos voadores vem à Terra fazer contato e investigar os seres humanos, é plausível? Porque até hoje nenhum desses seres apareceu em praça pública acabando com todas as dúvidas quanto a sua existência?

JHD- Em primeiro lugar: que necessidade eles teriam de sanar nossas dúvidas? Remetendo à religião, isso é o mesmo que pedir ao Cristo que ele prove que é o “Filho de Deus”. Particularmente, não sei se Jesus é ou não “O Filho de Deus”, não sou um religioso, sou um filósofo, mas creio nele quando diz que, se ele provasse que realmente é, então “o Reino de Deus estaria aqui”. Similarmente, considerando a possibilidade de que existam extraterrestres que nos visitam, se eles tirassem nossas dúvidas quanto à sua existência, consequentemente nos dominariam, pois seriam realmente superiores a nós, uma vez que conseguiram fazer várias visitas ao nosso planeta, passaram anos estudando nossos hábitos, nossas forças, nossa inteligência – coisa que nós não fomos capazes de fazer com eles – e, sendo superiores, nos subjugariam. Ou seja: a revelação de uma verdade só é possível onde e quando há condições de compreensão e instauração dessa verdade. Em outras palavras: se eles realmente existem e nos visitam há anos, e não se apresentaram ainda, de forma indubitável, a nós, ou ainda não estão prontos para nós, ou nós não estamos prontos para eles, ou as duas coisas. A própria ufologia, hoje, primeiro tenta negar que certas “luzinhas no céu”, certos fenômenos malexplicados, sejam OVNIS ou obras de extraterrestres, para só depois incluí-los entre seus anais. Apesar de que, para alguns, a ufologia seja quase uma religião, a maioria dos ufologistas supostamente sérios são bastante céticos em muitos casos. As dúvidas são importantes para a busca de conhecimento e devem persistir ainda por um bom tempo, creia-me.

SS- Da mesma forma que os humanos, podemos imaginar, que se houver vida em outros mundos e essa vida for inteligente, você acha possível eles estabelecerem contato com nós humanos, da mesma forma que os humanos estão fazendo na atualidade?

JHD- A comunicação, como sabemos, pressupõe sempre dois lados: o comunicador, ou orador, e o interlocutor, ou ouvinte, os quais alternam seus papéis. Permita-me comparar novamente essa questão de vida extraterrestre com a questão religiosa. As pessoas religiosas acreditam que se comunicam com Deus, ou seja, que elas são capazes de falar com Ele e que Ele transmite suas ordens, de maneira inteligível (apesar de misteriosa), direta ou indiretamente a elas. Pois bem! Essas pessoas religiosas acreditam que sabem exatamente o que Deus quer de nós (mas absurdamente, no caso dos cristãos, por exemplo, não são capazes de explicar porque um Ser com tamanha sapiência e poder deixou o mundo chegar a um ponto tal de depravação e insubordinação que precisou mandar em sacrifício seu próprio Filho, como única correção de tamanho problema). Ora, voltando à sua pergunta, havendo seres extraterrestres, com inteligência e capacidade suficiente para viajar tão longe, em veículos sofisticadíssimos, não seria demais considerar que também sejam capazes de saber ou aprender a se comunicar conosco de forma inteligível, não é mesmo? Já é mais que hora de deixarmos de brincar de “eram os deuses astronautas?”.

SS- A pergunta que sempre se pensa em termos de vida extraterrestre é se seremos capazes de percebê-la, pois afinal: O que é vida?

JHD- A resposta a essa questão está imbricada naquela que dei para a pergunta inicial. Mas, concluindo, gostaria que me permitisse encerrar minhas respostas da mesma forma que me conduzi até aqui, ou seja, fazendo comparações com as questões religiosas. Creio que, se um dia fizermos contato real e inegável com seres de outros planetas, será um fato tal qual o profetizado pelo Cristo sobre seu retorno: não precisaremos nos deslocar de um ponto a outro para testemunhar tão inusitado evento, pois ele será visível e compreensível para todos em toda parte deste planeta. Porém, prefiro considerar que esses possíveis seres de outros planetas talvez levem uma vida tão bem resolvida e agradável que não tenham razões para se preocupar com a vida alheia; talvez sua sabedoria os aconselhe a cuidar da própria vida, em vez de ficarem inventando deuses e alienígenas, que só servem para tirar a paz daqueles que só queriam admirar as estrelas. Muito obrigado pela oportunidade!

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

MINHA MONOGRAFIA (Parte XI)

PARA ALÉM DO BEM DO MAL
Uma das idéias mais combatidas na obra de Friedrich Nietzsche é, sem dúvida, a noção do “dever” – tanto no sentido kantiano, quanto como dogma cristão (se é que há alguma diferença entre ambos!). O “imperativo categórico” elaborado por Immanuel Kant (1724 – 1804), filósofo também alemão, do século XVIII, para Nietzsche, não passa de disfarce ou reelaboração dos mandamentos cristãos, de forma sucinta: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo; não matarás; não levantarás falso testemunho, etc, etc. A elaboração kantiana da “ação livre por dever” soa aos ouvidos do homem-dinamite como absoluta insensatez e absurdo. Para um filósofo que se mostrou contrário à metafísica deveria ser vergonhoso “cair nas malhas do velho Deus cristão”, assim pensava o destruidor de todos os valores.
Nietzsche denuncia que todas as tentativas dos filósofos nos últimos séculos de fundar uma ética foram simples remendos e arremedos de platonismo e cristianismo. As concepções de “bem” e de “mal” de dada cultura são sub-produtos de uma avaliação – mas de que perspectiva partem essas avaliações? A resposta nietzscheana é que, partindo do pressuposto de que a moral vigente é peso e medida para a valoração, bem e mal aí não passam de “pré-conceitos”, tendo como perspectiva algum ser metafísico, extra-mundano, juiz a-histórico, pois para a natureza há espiritualidade, necessidade e utilidade tanto num princípio quanto noutro.
“A moral tirou a inocência do mundo e a metafísica se constitui em verdade” – é o que diz Mauro Araújo de Sousa, em seu prefácio a “Para além do bem e do mal”, e segue citando o próprio Nietzsche: “O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esquecem que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas” (Nietzsche, 2002, p.27).
O platonismo condenou o mundo sensível à pura aparência, à inutilidade, à vulgaridade; inventou o mundo das idéias, um “mundo ideal” - quer dizer, “real” - para Nietzsche, no entanto, tudo isso não passa de divagação metafísica, devaneios platônicos, desatino. O cristianismo soube apoderar-se de “tão elevada filosofia” e montar, a partir dela, seu próprio sistema ético-filosófico – sobre isso entendem muito bem Agostinho e Tomás de Aquino, filósofos cristãos – como se isso fosse possível, diria Nietzsche. O mundo natural, a vida sobre a Terra, desde então só serviu de escárnio e pilhéria para tais filósofos, santos e deuses de toda a espécie. Qualquer extra-mundo é melhor que aqui, eis a “grande avaliação universal”. Caso não simpatizemos com tal lógica, que tal volvermos para o pessimismo schopenhaueriano, que elaborou enunciados, tais como: “sem dúvida a necessidade e o tédio constituem os dois pólos da vida humana”, ou “podemos conceber nossa existência como um episódio a perturbar, inutilmente, a bem-aventurada paz do nada”, e ainda, “Hoje está mal, amanhã será pior, até que sobrevenha o mal definitivo”? Não há o que estranhar se o suicídio, a partir desse prisma, se estabelecer como ato de maior sensatez!
Quando Nietzsche expôs seu pensamento em “Para além do bem e do mal – Prelúdio de uma filosofia do futuro” (1886), ele já havia escrito dois outros livros fundamentais para seu projeto de apresentar ao mundo a necessidade de uma transvaloração dos valores. Em “A Gaia Ciência” (1882), ele nos sai com: “A piedade é o sentimento mais agradável para aqueles que são pouco orgulhosos e que não têm possibilidades de fazer grandes conquistas: a presa fácil – qualquer ser sofredor é presa fácil - é coisa que os encanta” (p. 46); e em “Assim falou Zaratustra” (1884), sentencia: “Bem e mal, prazer e dor, eu e tu – tudo parecia-me colorida fumaça diante de olhos criadores. Queria o Criador desviar o olhar de si mesmo – e, então, criou o mundo” (p. 48). Faltava ainda “O Anticristo”, talvez para dar o desfecho final contra o demasiado tempo da moral cristã, mas esse só seria publicado postumamente. Na introdução a “Para além do bem e do mal”, Mauro Araújo de Sousa esclarece: “(...) o filósofo elabora uma crítica cultural utilizando o seu perspectivismo para abordagem, em vários aspectos, da formação do espírito no Ocidente, sempre tendo em vista reverter o quadro valorativo estabelecido pelo platonismo e sua metafísica. Também, o que é destaque na obra, é a questão dos “filósofos do futuro”, estabelecedores de novas condições culturais. Denomina esses filósofos como aqueles que são capazes de tentativas, de experimentos consigo mesmos e que, por não serem dogmáticos e nem se prenderem a nada, conseguem a liberdade do espírito. Esses filósofos do futuro seriam eles próprios os seus criadores, estando, por isso, além do bem e do mal, esse vício dualístico da “moralina cristã” .”
Portanto, estar além do bem e do mal é criar e nada temer; é soltar as amarras, porque a liberdade é galardão maior que todos os tesouros extra-mundanos da decadente moral cristã.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

ROSENFIELD - UM DEFENSOR DE NOSSAS "LIBERDADES"

O artigo que passo a transcrever é de autoria do filósofo brasileiro Denis Rosenfield. Faço-o porque considero importantíssimo divulgar o pensamento de um "sóbrio" defensor de nossas "liberdades", atento ao que o Estado não só pretende fazer, como faz, conosco, supondo-nos e colocando-nos na posição de "incapazes" - isto é, incapazes de agir e cuidar de nossa própria liberdade (caso ela exista).

O SEQUESTRO DAS LIBERDADES
Denis Lerrer Rosenfield - O Estado de S.Paulo

A liberdade é conquistada a duras penas. Sua perda pode ser relativamente rápida, mesmo imperceptível. Lutas políticas e civis se estruturam segundo suas diferentes acepções, que terminam por ser bandeiras que, com dificuldades, são levadas adiante. Frequentemente essas diferentes acepções são objeto de disputas acirradas, podendo até mesmo perverter a essência mesma do que seja a liberdade.

A liberdade é dita diferentemente segundo os interlocutores, os contextos e as definições. A rigor, caberia falar de liberdades, nas quais entram em linha de consideração a liberdade de empreender, a liberdade de escolha, a liberdade de pensamento e expressão, a liberdade da pesquisa científica, a liberdade de ir e vir, a liberdade de organização sindical e política, a liberdade religiosa e a liberdade de escolha dos dirigentes e representantes políticos.

A questão, porém, reside em que pode ocorrer um sequestro progressivo de certas acepções, outras permanecendo aparentemente intactas, até que outro sequestro reduza ainda mais o seu espectro. Tomemos a liberdade de imprensa e de expressão. O Estadão, pasmem, continua sob censura, configurando uma situação "normal", como se essa "anormalidade" fosse minimamente aceitável. O governo recuou, diante da pressão dos meios de comunicação, das medidas mais liberticidas de seu Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) em relação à imprensa e à mídia em geral. Para esse setor empresarial, as coisas aparentemente voltaram ao normal.

O problema, contudo, consiste em que se trata de uma simples aparência, pois sob a cobertura eufemística de "direitos humanos" outras medidas atentatórias às liberdades continuam constando em seus outros 500 itens e propostas. Pense-se, por exemplo, nos ditos "conselhos ambientais", que deveriam ser necessariamente consultados para a criação e ampliação de uma empresa em geral ? siderúrgica, de construção, de mineração, entre outras. Trata-se, sob a cobertura do politicamente correto, de propor a criação de "conselhos sindicais", "sovietes", para utilizar a linguagem russa, que passariam a ter ingerência na vida mesma das empresas, cerceando a liberdade de empreender.

A confusão de acepções chega a ser de tal monta que o próprio sentido da democracia é deturpado em função de um linguajar baseado numa doutrina "superior" dos direitos humanos. Assim, a democracia representativa se torna a bola da vez, com propostas de sua substituição progressiva pela democracia dita participativa. A linguagem utilizada é a da busca de uma sociedade mais justa e solidária. No entanto, quando vem à tona o significado dessas novas palavras, surgem as verdadeiras definições, como se a verdadeira sociedade justa e solidária fosse a que nasceria da destruição do capitalismo, definido como fonte de todos os males. Mais concretamente, a sociedade "justa e solidária" vem a ser identificada às propostas comunistas e socialistas dos irmãos Castro e de Hugo Chávez. Este último chegou até a ser defendido por nossos governantes como um verdadeiro democrata. Liberticidas são apresentados como libertários.

Há, também, toda uma campanha em curso que defende maior ingerência do Estado na vida dos cidadãos, cerceando a sua liberdade de escolha. Aqui, o sequestro da liberdade é dito ser feito em nome da saúde do cidadão, como se este fosse incapaz de discriminar por si mesmo aquilo que lhe convém ou não. O prazer, em particular, faz parte da escolha individual, não devendo o Estado ingerir num domínio que deveria estar ao abrigo de qualquer intervenção externa. O ato de regular os direitos individuais a partir dos direitos dos outros não pode ser confundido com uma ação administrativa estatal que se apresenta como a representação da virtude. O que não cabe é o indivíduo simplesmente receber uma imposição, dita do "bem", do que lhe deveria convir. A própria noção de prazer ? isso cada um sabe de sua própria experiência de vida ? tem os mais diferentes significados, podendo estar associada também à dor. Já Freud tinha concebido a indissociabilidade entre as pulsões de vida e morte. Cada um tem o direito de escolha de seu próprio corpo, de suas formas de expressão e de satisfação.

A liberdade de expressão e de empreender é vista igualmente com desconfiança a propósito da publicidade, como se essa atividade devesse ser cada vez mais controlada, retirando de sua alçada uma série de produtos considerados como "nocivos". Segundo essa concepção, o Estado é que determinaria o que seria tido por nocivo ou não para os cidadãos. A questão é de monta por estar baseada na confusão entre "influenciar" e "determinar". A rigor, a publicidade "influencia" o cidadão, não retirando deste sua capacidade de livre escolha. Ao contrário, ela a pressupõe. Posso comprar ou não um produto que me é apresentado publicitariamente. Daí não se segue que o cidadão seja completamente determinado, como se fosse um robô manipulável, desprovido de livre-arbítrio.

Causa espanto, também, que propostas ditas inovadoras de um "Brasil do século 21" estejam baseadas em posições retrógradas, avessas à liberdade de conhecimento e de pesquisa. Fala-se um pouco menos, neste período eleitoral, dos enormes problemas enfrentados pela CTNBio a propósito da pesquisa com transgênicos e da liberalização de sua comercialização. Até ainda recentemente, o dito "princípio da precaução" era identificado com o "princípio do imobilismo", na verdade, o princípio de restrição da própria pesquisa científica.

A liberdade de pesquisa foi conquistada após longos esforços, que perpassaram vários séculos, tornando as universidades lugares de realização das liberdades. Algumas ditas "novidades" são, agora, apresentadas como se estivéssemos diante de uma nova postura ante o mundo, quando são propostas de volta a um mundo anterior à conquista dessas liberdades.

PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

UMA EXPERIÊNCIA EM SALA DE AULA

O SENHOR É ATEU?
Por Jaya Hari Das*


Minha experiência até o ano passado como professor de inglês me dizia que eu já sabia muito sobre uma sala de aula, dando aulas para alunos de cursos específico do idioma e outros do ensino médio. A relação entre mim e meus alunos sempre foi boa e a receptividade deles na primeira aula pode ser considerada dentro do esperado. Mas, no início do ano passado, comecei a dar aulas de Filosofia numa escola pública de ensino médio. Um novo desafio – nada de ensinar a conjugar to be e to do, ou meter a língua entre os dentes para pronunciar o difícil “th” inglês. Agora eu teria de “mexer” com as cabeças daqueles jovens recém-apresentados à disciplina, apresentar a eles aqueles “gregos esquisitos”, despertar neles a tal da “atitude filosófica”, o senso crítico, um olhar diferente do mundo. Assim, logo na minha primeira aula, achei conveniente saber o que eles pensavam sobre a Filosofia e quais suas expectativas para a disciplina.

Estudantes são “criaturas barulhentas”, mas se o professor lhes faz um questionamento, mesmo deixando-os à vontade para dizer o que bem entenderem, eles fazem um silêncio angustiante. É preciso convocá-los, provocá-los, escolher alguém entre eles, receber um monte de “eu, não!”, até que um deles resolve falar. E foi assim que um deles falou: “O senhor é ateu?”.

Juro que não contava com aquela pergunta. Uma pergunta difícil de ser respondida, sobretudo para aqueles com os quais você conviverá por todo o ano letivo, tentando ser simpático, para que sua disciplina seja bem-aceita e seu dever como professor seja cumprido, ao menos, de maneira “razoável”. Tive de ser ágil o suficiente para não dar a impressão de que fora posto em “cheque- mate” por um aluno do ensino médio, logo na minha estreia.Sem querer, aquele aluno me deu a grande oportunidade de criar, ao mesmo tempo, um chavão e uma metodologia de ensino para minha nova disciplina. Foi, sem dúvida, Sócrates, o grego, quem me acudiu naquela tarde calorenta de início de maio. Fui em direção ao aluno que fizera a pergunta e, sob os olhares apreensivos de seus colegas, diante da “ousadia” do perguntador, cheguei bem perto dele e perguntei: “O que significa ‘ser ateu’ pra você?”.

É claro que ele não me respondeu, mas também não retrucou que eu estava tentando fugir à sua pergunta. Isso, no entanto, foi o suficiente para começar aquela aula inaugural. E, como disse anteriormente, orientou todo o meu trabalho na disciplina de Filosofia, pelo menos para aquele ano. Esse fato que se passou tal qual acabo de relatar, numa experiência real em sala de aula, prova que a Filosofia como disciplina pode ser tão fascinante e prática quanto é em seu sentido mais originário. Existem muitas possibilidades de se ensinar Filosofia, vivenciando seus elementos mais estruturais e básicos: a dialética, a maiêutica, a crítica e até o ceticismo.

A cada início de aula, eu convocava meus alunos a serem “sem-vergonhas”. Provocava-os a falar e a perguntar, sentenciando que “só os ignorantes” são “envergonhados”, por isso não ousam saber, e que, ao mesmo tempo, são “desavergonhados” por não terem vergonha da própria ignorância e imbecilidade em que se acomodaram. Disse a eles que só se pode responder bem a uma pergunta, não quando se sabe a resposta, mas quando se conhece bem “aquilo” sobre o que ela pergunta. Ensinei-lhes que é fácil “crer”, pois é uma atitude “negativa”, “passiva”, que não necessita de esforço, porém, “saber”, por ser uma atitude “positiva”, “ativa”, resultante da vontade, é a atitude daqueles que conhecem a “fé” pelo seu lado “prático”, e que, só assim, fé e conhecimento podem caminhar juntos, como a Filosofia (que sempre foi uma espécie de “advogado do diabo”) tem caminhado com a Ciência e a Religião, sempre aparando as arestas do absurdo.


*Jaya Hari Das é Filósofo e Fundador do Moficushinth – Movimento Filosófico “Cura do ser humano integral” – Terapia Hari.
E-mail: moficushinth@yahoo.com.br
Blog: http://terapiahari.blogspot.com
Twitter: jayaharidas