sexta-feira, 25 de maio de 2012

ABRINDO CAMINHOS ATÉ NIETZSCHE (Parte IV)

NIETZSCHE: AMORES, AMIGOS E SOLIDÃO


Como filósofo, Nietzsche não foi compreendido pelos seus contemporâneos; como homem, foi um solitário, sem amores correspondidos e com poucos amigos. Essa solidão física e intelectual é outro traço marcante na vida do filósofo que não deve ser esquecida, pois também ela direciona sua obra e está presente nela, tanto nos momentos mais poéticos quanto nos mais agressivos.

A jovem finlandesa, Lou Andréas Salomé foi pedida em casamento, mas recusou, queria apenas ser sua amiga e, quem sabe, uma espécie de discípula. Porém, nem isso aconteceu, pois, em breve, haveriam de se afastar definitivamente. Ela preferiu cair nos braços de Paul Rée, um amigo comum, e Nietzsche, desiludido, desandou a escrever aforismos contra as mulheres. O barão Heirinch von Stein fora para Nietzsche uma esperança de alguém que, ainda em sua época, compreendesse o seu “Zaratustra”. No entanto, von Stein veio a falecer muito cedo, levando consigo tal esperança, o que amargurou profundamente o filósofo. O intelectual, Paul Lanzky, lera “Assim falou Zaratustra” e escrevera um artigo num jornal de Leipzig e na Revista Européia de Florence. Dirigiu-se a Nietzsche, chamando-o de “mestre”, ao que o filósofo respondeu: “Sois o primeiro que me trata dessa maneira”.

Seus livros não eram lidos nem mesmo por seus amigos. Erwin Rohde, para quem o filósofo enviara uma de suas obras, jamais agradeceu o envio nem respondeu à carta que Nietzsche lhe escreveu. A primeira edição de sua obra-prima, “Assim falou Zaratustra”, vendeu apenas 40 exemplares; sete foram dados de presente, só uma pessoa agradeceu e ninguém teceu um único elogio.

Nietzsche apaixonou-se pela música de Richard Wagner, chegou a dizer, sobre a obra do compositor: “Bayreuth significa, para nós, o sacramento matutino no dia da batalha”. Enviou a ele o seu “Humano, Demasiado Humano” e recebeu em troca o libreto “Parsifal”. Porém, em breve, veria na obra de Wagner “a decadência”, todo “o niilismo” e adulação ao cristianismo. Então, rompeu definitivamente com o compositor.

Poucas vezes o filósofo teve a satisfação de ler algo positivo sobre seus escritos, como se deu com o “admirável” ensaio de Georg Brandes, “a mais conclusiva de todas as análises críticas sobre sua obra, então ainda pouco conhecida”. Numa carta a Brandes, datada de 2 de dezembro de 1887, Nietzsche escrevera: “Uma filosofia como a minha é igual a um túmulo: não se vive mais com ela”. Dentre os comentadores, Eugen Fink alfineta que “Nietzsche mais dissimulou do que publicou sua filosofia”; Martin Heidegger, que “é nos escritos póstumos que será preciso buscar a autêntica filosofia de Nietzsche”; e Muller-Lauter nos faz lembrar que o próprio filósofo se compreendia “como o mais escondido de todos os ocultos”.

É através de Zaratustra que Nietzsche supera essa falta de amigos, de amores e de comentadores de sua obra. Ele cria seus próprios amigos, já que não os tem de verdade. “Eu vos conjuro, meus irmãos, continuai fiéis à Terra e não acrediteis naqueles que vos falam de esperanças supraterrestres! Envenenadores eles são, quer saibam, quer não”. E, talvez, pensando em si mesmo: “Ó solitários de hoje, ó vós que viveis separados, um dia sereis um povo; de vós, que escolhestes a vós mesmos, nascerá um povo escolhido; e dele o super-homem”.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

ABRINDO CAMINHOS ATÉ NIETZSCHE (Parte III)

NIETZSCHE E A EUROPA DO SÉCULO XIX

Para melhor compreensão da filosofia nietzschiana, é necessário despojar-se de algumas concepções e valores culturais e religiosos, pois, de uma forma ou de outra, foram esses os atacados por esse filósofo. Isso não significa que o estudante deva abdicar de suas convicções ou ignorar seus valores em definitivo, não! Significa que seus valores e convicções não devem se impor aos temas e pontos estudados, sob pena de este estudo se tornar um embate de valores e convicções, o que não será nada proveitoso. No decorrer desta série, a maior compreensão dessa filosofia abrirá horizontes e perspectivas sobre seus próprios valores e convicções, de forma natural e proveitosa!

Compreender o universo nietzschiano é mergulhar na solidão, na doença e no contexto historicocultural do filósofo. Nenhum desses três elementos pode ser considerado isoladamente ou mesmo deixado de lado. Outro fator importante é manter sempre uma análise interpretativa e psicológica direcionada para os conceitos e representações do autor. Assim, um passeio pela História, mais precisamente pela Europa do século XIX, nos mostrará o contexto em que surge e vive nosso filósofo.

O excerto abaixo foi retirado de “Nietzsche e sua época”, publicado na revista Discutindo Filosofia Especial Ano 1 Nº1 (por uma questão de objetividade, clareza e espaço, os textos aqui apresentados poderão sofrer cortes e adaptações, sem prejuízo de sua informação):

“Nenhuma filosofia surge, por assim dizer, do nada. Intimamente ligada às circunstâncias de seu aparecimento, bem como aos pontos de vista que a introduziram, a Filosofia nietzschiana foi também criada em algum momento e em algum lugar.
A filosofia de Nietzsche abriga determinados valores e decorre de uma dada avaliação de seu tempo. [...] Comprometido com a crítica de nossos supremos juízos de valor, [Nietzsche] acreditava que o estudo das relações sociais só poderia adquirir o ápice de seu conteúdo com uma investigação retrospectiva das diversas morais que marcaram a História.
Avessa às tendências ideológicas dominantes na segunda metade do século 19, a filosofia de Nietzsche surgiu e amadureceu em contraponto aos movimentos que se insinuavam pela Europa adentro e, em especial, pelas janelas do mundo germânico – a unificação alemã industrial e a militarização da sociedade germânica”.

A Europa vivia um momento de reestruturação geopolítica e, consequentemente, a Alemanha, também. O filósofo, então, lança seu olhar sobre os acontecimentos e valores culturais de sua época, tecendo ali sua filosofia de contraposição. Aí, logo se vê que ele se tornará uma pedra no sapato do convencionalismo e do tradicionalismo, em vista de que percebe que “o valorar errado levou toda a Europa a um viver errado”. Esse papel de intérprete crítico e psicológico do seu tempo e do seu lugar exigirá dele que lance mão de novos valores e representações, sob pena de sucumbir às mesmas “velhas verdades e convicções” que vitimaram seus contemporâneos.

O trecho que vem a seguir foi extraído do meu artigo “O Crepúsculo dos Sonhos”, publicado pela Editora Escala em Coleção Guias de Filosofia – Nietzsche Vol. II:

“Antes mesmo que a Europa fosse o palco das duas Grandes Guerras, Nietzsche analisava a desilusão e a falta de esperança na vida da sociedade européia.
Na primeira metade do século 19, a Europa estava mergulhada em decepção e pessimismo. [...] O continente europeu tornara-se uma imensidão de miséria e sujeira, após o furacão chamado “Napoleão”. Nietzsche fora beber no realismo amargo (para muitos, no pessimismo de Arthur Schopenhauer). Era fácil perceber naqueles dias que a satisfação, ou felicidade, era mais incomum ou estranha à vida do que a dor e o sofrimento”.

A preocupação da Filosofia com os conflitos interiores e exteriores do homem são, como se sabe, os fomentadores do surgimento da Psicologia e da Sociologia. As guerras entre povos e nações, os conflitos políticos, a desagregação social, a submissão da razão à fé serão para Nietzsche a matéria-prima de sua nova filosofia.

“No limiar do pensamento contemporâneo, a filosofia enfrenta um desafio crucial: o questionamento do valor absoluto que se atribuía aos critérios que serviam como base à civilização ocidental. Com Nietzsche, começa-se a expor a fragilidade das certezas seculares” (Bernadette Siqueira Abrão).

Ler com atenção a obra de Friedrich W. Nietzsche nos fará entender o que seu papel como filósofo representou para a Europa do século XIX e como sua obra iria influenciar a cultura e outros pensadores do início do século XX.