segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

GANDHI E MANDELA: OS ADVOGADOS DE AHIMSA


Quando, ao estudarmos a História, aprendemos que a Ásia e a África são consideradas berços da civilização, ainda estamos longe de imaginar o que mais aqueles continentes teriam a oferecer para a raça humana além do desenvolvimento da própria espécie. Na história oficial, a Mesopotâmia (em grego, terra entre dois rios), recorrentemente citada no Velho Testamento, é apresentada como a região onde floresceram grandes civilizações, dentre as quais o povo hebreu; já o Mahabharata, poema épico hindu, trata sobre os povos arianos que viviam no reino dos Bharatas (possivelmente a Índia, da Idade do Ouro). Também a África, de uma forma geral, é apontada como a região onde teria surgido o Homo Sapiens (por volta de 300.000 anos atrás) e dali se espalhado por todo o planeta. Muita coisa se passou de lá até aqui, em ambos os continentes, porém, na história recente da civilização humana, os séculos 19 e 20 nos surpreenderam não com o aparecimento de uma nova espécie de hominídeo, mas com dois grandes exemplares da espécie humana: Mohandas K. Gandhi e Nelson Mandela, um indiano e o outro, sul-africano, respectivamente.

Se hoje a Índia é um país livre e a África do Sul é mais feliz, isso se deve ao ativismo político, à força de caráter e à determinação de dois dos maiores exemplares humanos dos últimos dois séculos – Mahatma Gandhi e Nelson Mandela. Curiosamente, ambos têm algo mais em comum, além dessas características acima citadas. A África do Sul, embora não sendo o país de origem de Gandhi, foi o local do despertar do espírito libertador, tanto dele quanto de Mandela, e ambos foram advogados – mais que meros advogados, verdadeiros promotores da não violência.

Durante 21 anos (de 1893 a 1914), o jovem advogado indiano, Mohandas Karamchand Gandhi (1869-1948), incumbiu-se da difícil missão de defender uma causa civil que recebeu de uma companhia comercial de Porbandar – 150.000 indianos vivendo e trabalhando sob condições injustas na África do Sul. Ali, começaria a ser esboçado um “gigante”, que aprenderia a lidar com as injustiças humanas de forma messiânica e desenvolveria seus próprios métodos pacíficos de alcançar seus objetivos. O primeiro deles foi chamado de satyagraha que, “interpretado habitualmente como ‘resistência passiva’, significa literalmente, como explica o próprio Gandhi, insistência pela verdade”, e outro, ahimsa, que é a exata expressão e prática da não-violência.

Com seu carisma, Gandhi logo tornou-se um líder dos indianos na África do Sul; procurou atenuar os atritos que encontrou e promover a educação e a higiene, que eram precárias por lá. “Criou uma associação de cultura indiana e fundou o jornal Indian Opinion e, mais tarde, o Young India que, espelhando seu pensamento, divulgavam notícias e davam pistas para conduta dos indianos”.

Aqueles 21 anos na África do Sul não foram nada fáceis para o destemido advogado indiano, cuja fidelidade aos princípios muitas vezes levou a sofrer todo tipo de violência, prisões e ameaças de morte. Mas nada disso foi suficiente para dobrar seu espírito indomável. Tendo cumprido brilhantemente seu compromisso no continente africano junto aos seus compatriotas, regressou à Índia, em 1915, para um novo e mais terrível desafio, que só terminaria com a libertação da sua pátria do domínio britânico e, infelizmente, com sua morte, 33 anos mais tarde.

Engana-se, porém, quem pensa que aquele que seria respeitado como o pai da Índia livre sempre fora um homem conciliador e exemplar. Seu temperamento, quando mais jovem, era difícil; ele era de natureza violenta, egoísta, ambicioso e até, poder-se-ia dizer, cruel. A mudança radical só veio após ele próprio reconhecer esses desvios em seu caráter e realizar um esforço consciente de modificar-se. Aí então começou a surgir o “Mahatma” (a grande alma), como ficaria conhecido.

Nessa luta pela libertação da Índia, foi muitas vezes preso, agredido pelos soldados ingleses e pressionado por facções políticas e religiosas, hindus e mulçumanas. Por diversas vezes recorreu ao jejum extremo para abrandar os conflitos internos ou forçar a Coroa Britânica a fazer concessões em favor dos indianos. Chamava as cadeias inglesas de “os hotéis de Sua Majestade”. Em 1913, após conduzir uma marcha, com mais de 20 mil pessoas, Gandhi foi preso, mas solto em seguida, sob pagamento de fiança. Essa seria apenas a primeira vez de muitas outras. Em 1922, por exemplo, depois de uma manifestação de “desobediência pacífica”, foi condenado a 6 anos de prisão, mas, dois anos depois, teve que ser solto, para passar por uma cirurgia de apendicite. Sua esposa, Kasturbai Makanji, com a qual casara, conforme os costumes indianos, ainda aos treze anos de idade, muitas vezes foi presa junto com o marido, sempre fiel a seus ideais e a seus próprios valores indianos. Sua morte, em fevereiro de 1943, foi sem dúvida um dos piores golpes em sua vida, o que viria a agravar sua saúde já frágil.

A 15 de agosto de 1947 a Índia conquista sua liberdade, mas, para dsgosto de Gandhi, passa a ser dividida em dois países: Índia e Paquistão. Em 30 de janeiro do ano seguinte, ao sair para sua caminhada, acompanhado por aproximadamente 500 pessoas que com ele iriam orar, Gandhi é assassinado, aos 78 ano, por Nathuram Vinayak, um hindu fanático, insatisfeito com a convivência tolerada pelo Mahatma com os mulçumanos. Ao levar o tiro fatal, o Mahatma teria dito apenas “He Rama!” (Ó Deus!).

Não existe, na história real da Índia, um nome maior do que o de Mahatma Gandhi. Sua epopeia só é comparável aos clássicos da literatura mítica hindu, como Bhagavad-Gita, no qual se narra a batalha entre os Pandavas e os Kauravas e os ensinamentos de Krishna ao general e discípulo Arjuna, e o Ramayana, no qual se lê os esforços de Rama e seu fiel companheiro Hanuman para salvar sua esposa, Sita, das mãos do perverso demônio, Ravana. Mas Gandhi não foi um personagem da mitologia hindu; ele foi um personagem histórico, um homem real que, como bem enfatizou Albert Einstein, ao declarar-se a seu respeito logo após sua morte, “Talvez as gerações futuras dificilmente acreditarão que alguém como ele, em carne e osso, tenha caminhado, um dia, sobre a terra”. Na verdade, dizer que Mahatma Gandhi foi apenas um homem é quase uma blasfêmia, é um despropósito – Gandhi foi um fenômeno que ocorreu na Índia e arregalou os olhos do mundo; um evento cósmico, universal, tão inusitado em probabilidades humanas que deixa marcas indeléveis na história da humanidade.

Três anos após o retorno de Gandhi à Índia, nascia na África do Sul, na província de Cabo Leste, mais precisamente num pequeno vilarejo de nome Qunu, do clã dos Madiba (aquele que puxa para cima o ramo de uma árvore, em tradução livre), Rolihlahla Dalibhunga Mandela . “Nelson” só seria acrescentado ao seu nome de batismo, anos mais tarde quando, já na escola, uma professora, atendendo a um costume da escola, resolveu dar-lhe um nome inglês. Seja como for, no ano de 1918, não só para a alegria África do Sul, mas para o mundo inteiro, nascia Nelson Mandela, o líder sul-africano que ensinaria a todos outra grande lição de persistência, resistência e força de caráter, assim como fora a de Mahatma Gandhi.

Anos mais tarde, já na Universidade de Fort Hare, começa a surgir o embrião de um ativista político. Ali fez muitos amigos, com os quais formaria, mais tarde, o núcleo de comando do Congresso Nacional Africano. Também participou de várias manifestações, uma delas contra a baixa qualidade da comida, e mesmo tendo boicotado, junto com outros colegas, a eleição do conselho de estudantes, acabou eleito. Apesar disso, Mandela foi aconselhado a não assumir o cargo, embora o reitor tenha lhe impingido duas opções: assumir ou deixar a faculdade. A despeito desse contratempo, em 1943, Mandela ingressa no curso jurídico da Universidade de Witwatersrand, onde gradua-se. Desde o ano anterior ano, já freqüentava informalmente as reuniões do CNA. Em 1949, o governo sul-africano aprovou o regime segregacionista, denominado Apartheid. Em 1951, Mandela foi eleito presidente da Liga Juvenil do CNA (ANCYL, em inglês) e, no ano seguinte, presidente do CNA na província de Transvaal, passando à vice-presidência nacional da instituição. Embora em 1953, em Sophiatown, Mandela tenha proferido um discurso em que pela primeira vez diz que os tempos da resistência passiva tinham passado, sua trajetória de resistência demonstrou-se mais pacífica do que nunca. Mas isso não evitou que tivesse sofrido restrições e sua desobediência a elas culminasse em sua prisão, a 5 de dezembro de 1956, época em que, apesar de ainda morar junto com sua mulher, Evelyn, completamente avessa à política e agora testemunha de Jeová, já não viviam como casados.

Em breve, Mandela estaria em liberdade, enquanto aguardava seu julgamento por traição. Nessa ocasião foi que viu, pela primeira vez, Winifred Zanyiwe Madikizela parada num ponto de ônibus, em seu uniforme de enfermeira, que logo se tornaria sua esposa, ficando conhecida no mundo todo como Winnie Mandela. Esse casamento, porém, surgiu em tempos muito turbulentos. Em 8 de abril de 1960, o CNA foi proibido e Mandela fica preso até o ano seguinte, quando passa para a clandestinidade, sendo obrigado a ver a esposa em encontros furtivos, que precisavam ser planejados com a máxima segurança.

Embora o princípio da não-violência continuasse a nortear o CNA, eventos, com ataques mortais por parte do apartheid, levaram o Chefe Luthuli a autorizar que Mandela levasse a cabo a constituição de um movimento de resistência pelas armas. Mandela, então, chega a declarar: "Nós adotamos a atitude de não violência só até o ponto em que as condições o permitiram. Quando as condições foram contrárias, abandonamos imediatamente a não violência e usamos os métodos ditados pelas condições”. No início dos anos de 1960, Mandela viaja a muitos países, como Inglaterra, Libéria, Nigéria, Botsuana, Etiópia, Egito, Marrocos, em busca de conhecimentos sobre estratégias de guerra e de guerrilhas. Enquanto isso, na África do Sul, a polícia está de prontidão para capturá-lo, assim ouvir rumores de seu retorno ao país. E, em 5 de agosto de 1962, a prisão acontece. Inicialmente, a detenção seria por 5 anos, mas, após a polícia encontrar documentos comprometedores sobre ele, um novo julgamento com acusações mais graves, sendo condenado à prisão perpétua, em 11 de junho de 1964. Em sua defesa, fez o seguinte discurso: "Durante a minha vida, dediquei-me a essa luta do povo africano. Lutei contra a dominação branca, lutei contra a dominação negra. Acalentei o ideal de uma sociedade livre e democrática na qual as pessoas vivam juntas em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal para o qual espero viver e realizar. Mas, se for preciso, é um ideal pelo qual estou disposto a morrer".

Mas Nelson Mandela, o Madiba querido dos sul-africanos não morreria ainda – não dessa vez! O prisioneiro 46664, que ocupou uma cela de 2,5 por 2,1 metros, na prisão da Ilha de Robben, seria “hóspede” de outras prisões da África do Sul. Em 1982, Mandela, juntamente com outros presos, foi transferido para a prisão de Pollsmor, de segurança máxima; seis anos depois, foi novamente transferido, agora para um presídio de segurança mínima - a prisão de Victor Verster, passando a morar numa cabana no complexo penitenciário. O certo é que Nelson Mandela passou 27 anos de sua vida atrás das grades, sendo liberto em definitivo somente em 11 de novembro de 1990. Na ocasião, uma multidão de sul-africanos o esperava na saída da prisão de Victor Verster (hoje chamada de Drakenstein) para saúda-lo como pai da nação negra sul-africana, embora para ele não houvesse diferença entre estes e os sul-africanos brancos, pois todos formavam a mesma e única nação, à qual ele sacrificara quase três décadas da sua vida para ver liberta da diferença e da segregação raciais. Sobre isso, ele havia declarado: "Ninguém nasce odiando outra pessoa por causa da cor de sua pele, da sua origem ou da sua religião. Para odiar, é preciso aprender. E, se podem aprender a odiar, as pessoas também podem aprender a amar”.

Dali em diante, dias melhores e ventos mais favoráveis acalentam a vida sofrida do líder sul-africano. Em 1993, recebe o Prêmio Nobel da Paz, juntamente com Frederik de Klerk, que intermediou o período de transição, que culminaria com a eleição de Mandela para a Presidência do país, no ano seguinte. Em seu discurso, ao receber o Nobel, assinalou: "O valor deste prêmio que dividimos será e deve ser medido pela alegre paz que triunfamos, porque a humanidade comum que une negros e brancos em uma só raça humana teria dito a cada um de nós que devemos viver como as crianças do paraíso". Também fez questão de prestar homenagem a Frederik de Klerk, dizendo que ele “teve a coragem de admitir que um terrível mal tinha sido feito para o nosso país e nosso povo com a imposição do sistema apartheid”.

O escritor sul-africano, André Brink, em artigo publicado logo depois que Mandela encerrou seu mandato, cita-o como o maior nome do século XX; comparando-o a outros expoentes, como Gandhi e Martin Luther King Jr. Curiosamente, um biógrafo de Gandhi não hesitara em escrever, anos antes: “Com o fenômeno Gandhi entrou a história da humanidade numa nova fase de evolução. O mundo não pode mais ser o mesmo depois de Gandhi. Temos agora novas perspectivas para nosso viver ético, cultural, e espiritual”. Então, ao que parece, a semente que fora lançada, anos atrás, ali mesmo, no solo sul-africano, por fim vingara – e como vingara! A pequena, porém vigorosa semente de ahimsa, fez brotar uma nova flor – Nelson Mandela. Então, que venham os novos frutos, as novas flores, enfim a Primavera inteira. A humanidade está sedenta, faminta, de “Humanidade”.