domingo, 8 de fevereiro de 2015

REFLEXÕES DO SÉCULO XXI (Parte II)

COMO VIVER, SE DEUS NÃO EXISTE?


Durante muitos séculos, o homem vem vivendo sob a perspectiva de que “Deus existe”. Essa noção, evidentemente, moldou por todo esse tempo seu comportamento, determinou suas atitudes, gerou linhas de pensamento atreladas a esse viés. Pensamentos que, provavelmente, jamais teríamos tido, caso pensássemos ao contrário – “Não existe Deus!”. Homens comuns e até pensadores se viram obrigados a levar em consideração essa ideia massificada pelas multidões de desvalidos e pelas religiões institucionais. Por muito tempo, pensar diferente disso era o mesmo que assinar sua condição de “renegado social”; ser considerado um ateu era quase uma pena de morte. A Igreja decretava a sentença e, quando não cumpria ele própria a execução, deixava naturalmente a cargo da multidão enfurecida (lembrem-se: a Idade Média ainda não acabou!). Não admitir a existência de Deus, ou falar algo que sugerisse isso, era o mesmo que trazer a inscrição 666 na testa – o número da Besta, do Anticristo, segundo a Bíblia. Deus tinha que existir, aceitássemos isso ou não!

Os antigos egípcios tiveram seus deuses e deusas; os gregos também tiveram seus deuses do Olimpo. Se tivéssemos vivido nesses lugares, naquela época, sem sombra de dúvida, teríamos achado normal adorar Osíris ou Ísis, ou então Zeus ou Poseidon. Povos imemoriais também tiveram os seus “Senhores Invisíveis”. Então, poderíamos nos perguntar de onde vem essa propensão a acreditar em “Deus” ou “deuses”? Como homem do século 21, e sem o peso da fé, ou sem o punho massacrante da Igreja, ouso dizer que, não sabendo quase nada sobre nós, ficou mais fácil inventar “um outro”, sobre o qual “sabemos tudo” – porque nós o inventamos. Mas, perdão! Esse pensamento não é meu. Ele é uma versão menos poética e mais direta de um outro, escrito pelo menos um século e meio atrás, que pertence ao filósofo Nietzsche. Em seu “Assim falava Zaratustra”, encontra-se a matriz do que acabo de dizer: “Ainda não vos havíeis procurado: então me encontrastes. Assim fazem todos os crentes; por isso importa tão pouco toda crença”. É por isso que os crentes (religiosos de toda a espécie) são muito práticos e categóricos em emitir sentenças como estas: “Deus não gosta disso”; “Deus não aprova esse tipo de ação”, “Deus quer que nós façamos tal e tal coisa”. Somente aquele que “inventou Deus” teria tal capacidade de saber o que se passa na mente d’Ele, quais são seus gostos e caprichos. Em resumo: tudo demasiado humano!

Depois de inventar o seu “Deus”, cada povo tratava de confeccionar seus cultos e rituais. São as formas de agradar esse “Deus” ou aplacar sua cólera, conseguindo em seguida seus favores, pelo menos era o que se pensava. Dito de outra forma, inventamos um ser apenas para fazer de nós mesmos "escravos voluntários" d’Ele. Estabelecemos os horários, os dias e os locais de adoração desse ser. E, depois de realizarmos todo esse ritual inventado, sentimos naturalmente algo no coração que nos diz que Ele aceitou as oferendas, as palavras de bajulação e a nossa disposição de deixarmos de lado nossas próprias vidas por alguns instantes para brincar com o “Homem Invisível” que nós mesmos criamos. Esses rituais foram passados de geração para geração, sempre acrescentando algum detalhe que o sofisticasse, como uma imagem de ouro, uma vestimenta cheia de símbolos para os sacerdotes e outra para os devotos, e um livro ou mais onde ficassem registrados os pontos marcantes dos louvores e das falas dos homens mais elevados na hierarquia daquele credo. Com isso, amalgamava-se ali o que ficou conhecido como “tradição”, a qual se tornaria a guardiã direta dos dogmas – preceitos que jamais podem ser mudados ou questionados. As religiões institucionais surgiram para dar garantia a tudo isso e providenciar para o povo, que se agrega a ela (os fieis), a noção de que estão irmanados, congregados em torno de algo que é bem maior que todos juntos, a Igreja – e no final das contas, Deus.


Religião, da raiz latina “religio”, quer significar que, seguindo tais rituais de certo credo, a pessoa se “religa” ao seu criador (Deus). Ou seja, sem essa atitude religiosa, o homem estaria afastado do seu criador e, por conseguinte, toda sua vida seria em vão. Quando pensamos nos atributos conferidos ao Deus cristão, em particular o de ser Ele “onipresente”, para nós, que usamos o raciocínio para entender o que precisa ser entendido, surge uma clara incongruência: como posso ter me desligado daquele que não só está em toda parte ao meu redor, como também me preenche em todos os sentidos? O cristianismo tem as melhores artimanhas para driblar os mecanismos da lógica, e quando todos as anteriores falham em dar explicação, ele se sai com a mais infalível de todas: esse é o mistério de Deus. E aí todo o debate desmorona, feito um castelo de areia tomado pelas águas do mar.

A reconhecida Igreja Católica, de linhagem cristã, estendeu seu domínio por todo o Ocidente, embora também se admita por aqui outras religiões e cultos a outros deuses. Se por um lado há o discurso nas várias religiões tentando convencer os fieis de diferentes credos de que “Deus é um só!”, e sendo um e o mesmo, todas as religiões são co-irmãs, há também um forte movimento na direção contrária, que não abre mão de ter o monopólio do “Deus verdadeiro”. Esse esforço pela supremacia não é velado, muito pelo contrário, ele é explícito e violento, e tem tentáculos em diversos setores da sociedade, nas nações, mais precisamente. Quando a religião está ligada diretamente ao Estado, os males para a população são incalculáveis. Um discurso feito pelo papa sobre qualquer assunto sociopolítico tem grande influência e repercussão no mundo. Da mesma forma, um pronunciamento do Dalai Lama, ou qualquer outro líder religioso, mesmo aqueles que só têm projeção graças à mídia, sedenta de manchetes polêmicas – os famosos “gurus da moda”.


As igrejas evangélicas usam o nome do seu garoto-propaganda, Jesus Cristo, para espalharem templos por toda parte. Templos cada vez mais suntuosos. A megalomania religiosa não tem limites e pode ser lida em letras garrafais nas fachadas dessas igrejas: Universal, Mundial etc. Não há o que negar: Deus é acima de tudo “uma máquina de fazer dinheiro” – em todas as línguas e moedas. Portanto, caso se comprovasse sua inexistência, o cataclismo econômico se abateria sobre os que ganharam, e ainda ganham, muito dinheiro à sua custa. Milhões de pessoas estariam falidas, negócios bilionários simplesmente iriam à bancarrota. O próprio Vaticano, que enriqueceu graças ao ouro das novas terras, descobertas ou conquistadas pelas nações católicas durante o período do colonialismo não teria mais como manter seu patrimônio nem como pagar os altos salários a seus padres, bispos, arcebispos, cardeais etc. Pois é! Vendo por esse prisma, podemos entender muito bem por que Deus tem que continuar existindo. Dentro da conjuntura a que se chegou, o mundo, ao que parece, não subsistiria sem Ele.

Mas será que não há mesmo um modo de se viver e até ser feliz sem Deus? Será que, despertando desse "sono dogmático”, não veríamos uma verdadeira luz, que não fosse apenas um subterfúgio para a nossa covardia, para nossa fraqueza e nosso medo? Será que, a partir daí, não encontraríamos uma nova perspectiva? Que grande calamidade ou mal poderia sobrevir a nós por simplesmente, compreendermos, aceitarmos, descobrirmos que “Deus não existe”?

Muitos são os que cometem a tolice de dizer que sem Deus os homens abandonariam a moralidade, pois nossos mais elevados valores morais cairiam por terra e a selvageria tomaria conta da humanidade. Quanto absurdo! Será que esses tolos, que dizem tal asneira, não conseguem perceber que em todos os tempos e em qualquer lugar, mesmo com milhões de seres humanos acreditando em Deus, a humanidade não se tornou melhor do que era de maneira expressiva, significativa? Nem mesmo as pessoas consideradas as mais religiosas são “boas”, como nos levam a pensar – elas são capazes dos mesmos atos cruéis de qualquer outro homem comum, pois podem trazer consigo as mesmas tendências, os mesmos apetites animalescos. De quantos padres pedófilos já se tem notícia? Quantos pastores abusaram de jovens ou extorquiram dinheiro de incautos? Quantos são os gurus prestidigitadores da fé? Quantos homens-bomba seguem matando inocentes em nome de Deus? Deus, portanto, não serve de inspiração só para os grandes homens santos, como São Francisco de Assis, Gandhi ou Madre Teresa de Calcutá. Ele também é a força motriz das várias espécies de assassinos e criminosos, de toda e qualquer religião.



Talvez decretar a morte ou a inexistência de Deus não seja a solução dos nossos problemas existenciais, mas mantê-Lo vivo não é, sim, erro danoso para nós. Tentar matá-Lo seria já em si um grande problema – como se mata um “fantasma”? Melhor seria negligenciá-Lo. Deixá-Lo tão esquecido no seu céu de algodão-doce que o próprio tempo daria cabo dEle. O tempo faria por nós o que a nossa covardia, nossa fraqueza e nosso temor juntos foram incapazes de fazer até hoje. Aí, nós, como filhos órfãos de um Deus nunca existente, talvez nos abraçássemos, e um entre nós, que jamais poderia ser um sacerdote, tomando a palavra, talvez assim falasse: “Agora que não resta qualquer dúvida de que estamos sós, que não há nenhum deus, nenhum amparo celeste, façamos o melhor de nossa existência!”. Eis o que seria a nossa verdadeira redenção.

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