sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

MORAL, ÉTICA E RELIGIÃO - COMO DESCONSTRUIR ESSES ÍDOLOS






             O homem comum[1] (esse “produto industrial da natureza”, como dizia Arthur Schopenhauer[2]) dificilmente consegue admitir a ausência da “moral” em sua vida e na dos seus semelhantes. Isso porque, além de ter nascido numa sociedade cuja cultura se baseia na necessidade de códigos morais, moral compreende moralidade, ética e valores comuns, que facilitam o convívio social, assegurando, ou melhor, dando a sensação de que todos concordam e vivem segundo esses códigos. Mas como é fácil comprovar, tal sensação não passa de “falsa sensação”, teoria sem comprovação prática, pois a sociedade não pode contar com essa certeza – a certeza de que todos seguem esses códigos morais. Com isso cai também por terra a ideia de que a moralidade serve para conter os instintos animalescos dos homens, trazidos dos tempos remotos, chamados primitivos; de que a ética guia os atos humanos nesta ou naquela atividade; de que os valores se impõem como superiores, servindo aos seres humanos como pontos de referência em suas vidas. A moral diz dos costumes, regras, tabus e convenções estabelecidas por cada sociedade; ela orienta o que é moral ou imoral, certo ou errado, bom ou mau – isso não quer dizer que é seguida por todos os cidadãos em todas as circunstâncias, e é bem aí que está sua vulnerabilidade. Diante dessa perspectiva da moral, há os que se dizem ou são chamados de moralistas (aqueles que querem impor a moral vigente sobre os seus pares), os imorais (que não seguem a moral vigente) e os amorais (que não consideram qualquer tipo de moral).

            Em todas as culturas, entre todos os povos, a verdade sempre reinou imponente sobre a mentira e foi ensinada a ser zelada desde a infância, para gerar homens íntegros, nos quais se pode confiar. A verdade é tida como a afirmação do que é correto, do que é seguramente o certo e está dentro da realidade apresentada. Será? Ou, segundo o caso e as circunstâncias, ela se deixa corromper em nome de indivíduos ou grupos que detém o poder local, tornando-se questionável? Será que a verdade é uma só ou está sujeita a interpretações? Há verdades que ganham status pela tradição ou pela força da autoridade, as quais geralmente não são questionadas e sim aceitas com uma naturalidade suspeita.

            Desde tempos remotos, o homem instituiu seus cultos a entidades invisíveis, considerando que estas moviam as forças da natureza e podiam causar-lhes o bem ou o mal. O temor diante do desconhecido e a impotência perante situações como o sonho e morte se encarregaram de povoar o imaginário dos seres humanos daqueles tempos com inúmeras crendices que deram origem às religiões. Religião tem sua origem nas palavras religio e religare[3], as quais significam o ato de se religar a alguma força ou ser superior. A Religião não se manteve uma só. Cada povo em cada época desenvolveu sua maneira peculiar de adorar e entrar em contato com seu deus ou deuses, criando para si cultos, modelos de adoração, que se diversificaram muito ao longo dos séculos. Esse deus ou deuses tinham poder sobre o bem e o mal, ou também poderiam ser apenas do bem ou apenas do mal, segundo esta ou aquela crença, assim, quando se queria obter um benefício, faziam-se oferendas ou sacrifícios ao(s) deus(es) do bem e quando se queria atingir um inimigo com um malefício, recorria-se da mesma forma ao(s) deus(es) do mal. Essas oferendas e sacrifícios podiam ser de sangue, de animais ou de pessoas que, embora horrendos, eram feitos com naturalidade, e até sob certa festividade, pelos cultuadores. O certo é que as religiões que vingaram até nossos dias agora disputam o monopólio de ser as que cultuam o deus ou deuses verdadeiros. Algumas religiões ainda possuem traços de seus rituais primitivos, enquanto outras apenas reafirmam constantemente seus rituais e dogmas, embora adaptando-os aos novos seguidores.


            
               Moral, verdade e religião andam praticamente juntas e caracterizam o tipo de pessoa que se é, ou seja, falam do caráter de cada ser humano. Não é raro entre os homens comuns se acreditar que aquele que não se comporta segundo a moral vigente, não prima pela verdade e o que não professa uma religião é um ser humano sem caráter e perigoso para o bem-estar social. Assim, essas três senhoras distintas são tidas como as aferidoras do tipo humano, nesta ou naquela sociedade, nesta ou naquela época. Desta forma, moral, verdade e religião são as novas deusas da humanidade, mesmo que aqui e ali se diversifiquem e até divirjam. Embora muitas pessoas, dos últimos séculos para cá, tenham se rebelado contra elas e questionado seus papeis como referência do tipo “bom homem”, há ainda uma multidão de outras (a grande maioria) que as teem como verdadeiros ídolos.


            É bem aqui que este trabalho põe seu foco e, tomando por referência principalmente a obra do filósofo Friedrich W. Nietzsche, vai lançar um outro olhar sobre esses “ídolos”, de forma a demonstrar como teem pés de barros, que são vulneráveis a qualquer criteriosa investigação e que sua fragilidade jaz na própria origem de cada um deles. A que se dizer também que o intuito precípuo deste trabalho não é simplesmente desconstruir esses ídolos, deixando escombros onde eram edificações aparentemente sólidas, e sim dar destaque a novíssimos critérios de avaliação da humanidade que não se estabeleçam por valores confirmadamente frágeis, que se estabeleceram, como já foi dito acima, pela força da tradição e da autoridade.

            Pois bem! Quando se utiliza da obra nietzscheana para elencar argumentos contra valores, ideias e crenças fortificadas durante séculos, é preciso que se saiba de antemão da dificílima tarefa que isso representa e que se tenha um bom domínio de toda a sua filosofia, e não apenas fragmentos dela. As ponderações, as máximas apresentadas por Nietzsche são tão profundas que não nos deve tentar interpretá-las, isto é, usar abusivamente nossas próprias palavras para transmiti-las. O perigo de deturpá-las é muito grande e tentador. Isso não significa dizer que não possamos, nós mesmos, apresentar o pensamento nietzscheano para os outros, significa que melhor será apresentá-lo com suas próprias palavras, assegurando-nos de que aquele recorte não só convém aos nossos interesses, mas também é fiel à integridade de sua obra. Para tanto, é bom que tenhamos certeza que seu pensamento seja já reconhecido pelos outros.

             Dentre as obras que utilizo para tratar da temática proposta neste trabalho, uma das mais úteis é Crepúsculo dos Ídolos ou Como filosofar a marteladas (1888). Um livro ousado, como toda a obra de Nietzsche, que não deixa pedra sobre pedra daquilo que ataca, por isso, “a marteladas”. Podemos começar citando uma frase que cai como uma luva para este trabalho: “Há mais ídolos que realidades neste mundo”. Dito isto, agora creio que podemos caminhar juntos nessa tarefa de desconstrução.

            Nietzsche tem por referência, como valor superior, a Vida, mas essa vida não é em favor do homem – ela não está aí por causa dele, e sim o contrário: ele está aí por causa dela. Então, a Vida é um valor por si mesma. Por outro lado, a moral surge como um valor modelador do homem, “domestificador do animal homem”, e nesse afã, ela se contrapõe à própria Vida, contra os instintos trazidos pelo homem. Além disso, não existe apenas uma moral. A moral foi tecida, aqui e ali, por forças dominantes, por classes, grupos, indivíduos que estavam no poder. Assim, ela funciona em prol de quem está no poder, subjuga os dominados de então e submete os que vêm depois pela força da tradição, como se ela fosse um valor inato, válido em todos os tempos para todos os povos. A moral dita as ações, diz o que se deve e o que não se deve fazer dentro de uma sociedade. Desta forma, os homens fortes se vêm acorrentados por códigos morais que, se não seguidos à risca, os transformam em marginais, a escória da sociedade. Então Nietzsche dirá: “A moral anti-natural, isto é, toda moral ensinada, venerada e pregada até o presente, se dirige, ao contrário, precisamente contra os instintos vitais – ela é uma condenação, ora secreta, ora ruidosa e descarada desses instintos[4]”.

            Com essa citação, muitos poderão perguntar: “Nietzsche pretende então que os homens se mantenham no estágio selvagem? Vivendo quase como animais?”. Então, vejamos! Embora a moralidade tenha sido instaurada há muitos séculos nas sociedades da África às Américas, o que há de selvagem no homem foi debelado? Toda a violência que se tem conhecimento de norte a sul e de leste a oeste foi aplacada pela moral? O comportamento doentio, de ódio, de traição, de mau-caratismo de um sem-número de pessoas, história adentro até os dias de hoje, demonstra um declínio na animalidade humana? Alguém ousará responder essas perguntas com um sincero e sonoro “Sim!”? A mordaça da moral com os seus “Tu deves” e “Tu não deves” não passa de um artifício difundido para a dominação de uns por parte de outros. A moral que até agora foi imposta pretende igualar todos os homens, fracos e fortes, para a domestificação por parte da classe ou dos indivíduos que estão e pretendem se manter no poder em cada sociedade. Nas palavras de Nietzsche: “A fórmula geral que serve de base a toda religião e a toda moral se exprime assim: “Faça isto ou aquilo, não faça isto ou aquilo – então serás feliz! Caso contrário...” Toda moral, toda religião não é senão esse imperativo – eu o chamo o grande pecado hereditário da razão a imortal não-razão”.



[1] Aquele que tem por prioridades ganhar o pão de cada dia, ter um emprego, uma família, alguns bens básicos, sem se importar com as questões profundas, filosóficas, que pairam sobre a vida.
[2] Filósofo alemão, rotulado como “pessimista”, por apresentar em sua obra-prima, “O Mundo como Vontade e Representação”, uma visão de mundo nua e crua, onde toda a realidade é movida por uma vontade cega, sem objetivo racional, sem um fim que agrade a razão e o coração dos seres humanos.
[3] Termos retirados do latim.
[4] Crepúsculo dos Ídolos, Cap. A Moral como Manifestação contra a Natureza.