O homem comum[1]
(esse “produto industrial da natureza”, como dizia Arthur Schopenhauer[2])
dificilmente consegue admitir a ausência da “moral” em sua vida e na dos seus
semelhantes. Isso porque, além de ter nascido numa sociedade cuja cultura se
baseia na necessidade de códigos morais, moral compreende moralidade, ética e
valores comuns, que facilitam o convívio social, assegurando, ou melhor, dando
a sensação de que todos concordam e vivem segundo esses códigos. Mas como é
fácil comprovar, tal sensação não passa de “falsa sensação”, teoria sem
comprovação prática, pois a sociedade não pode contar com essa certeza – a
certeza de que todos seguem esses códigos morais. Com isso cai também por terra
a ideia de que a moralidade serve para conter os instintos animalescos dos
homens, trazidos dos tempos remotos, chamados primitivos; de que a ética guia
os atos humanos nesta ou naquela atividade; de que os valores se impõem como
superiores, servindo aos seres humanos como pontos de referência em suas vidas.
A moral diz dos
costumes, regras, tabus e convenções estabelecidas por cada sociedade; ela
orienta o que é moral ou imoral, certo ou errado, bom ou mau – isso não quer
dizer que é seguida por todos os cidadãos em todas as circunstâncias, e é bem
aí que está sua vulnerabilidade. Diante dessa perspectiva da moral, há os que
se dizem ou são chamados de moralistas (aqueles que querem impor a moral
vigente sobre os seus pares), os imorais (que não seguem a moral vigente) e os
amorais (que não consideram qualquer tipo de moral).
Em todas as
culturas, entre todos os povos, a verdade
sempre reinou imponente sobre a mentira e foi ensinada a ser zelada desde a
infância, para gerar homens íntegros, nos quais se pode confiar. A verdade é
tida como a afirmação do que é correto, do que é seguramente o certo e está
dentro da realidade apresentada. Será? Ou, segundo o caso e as circunstâncias,
ela se deixa corromper em nome de indivíduos ou grupos que detém o poder local,
tornando-se questionável? Será que a verdade é uma só ou está sujeita a
interpretações? Há verdades que ganham status pela tradição ou pela força da
autoridade, as quais geralmente não são questionadas e sim aceitas com uma
naturalidade suspeita.
Desde tempos remotos, o homem instituiu seus cultos a
entidades invisíveis, considerando que estas moviam as forças da natureza e
podiam causar-lhes o bem ou o mal. O temor diante do desconhecido e a
impotência perante situações como o sonho e morte se encarregaram de povoar o
imaginário dos seres humanos daqueles tempos com inúmeras crendices que deram
origem às religiões. Religião tem sua origem nas palavras religio e religare[3],
as quais significam o ato de se religar a
alguma força ou ser superior. A Religião não se manteve uma só. Cada povo em
cada época desenvolveu sua maneira peculiar de adorar e entrar em contato com
seu deus ou deuses, criando para si cultos, modelos de adoração, que se
diversificaram muito ao longo dos séculos. Esse deus ou deuses tinham poder
sobre o bem e o mal, ou também poderiam ser apenas do bem ou apenas do mal,
segundo esta ou aquela crença, assim, quando se queria obter um benefício,
faziam-se oferendas ou sacrifícios ao(s) deus(es) do bem e quando se queria
atingir um inimigo com um malefício, recorria-se da mesma forma ao(s) deus(es)
do mal. Essas oferendas e sacrifícios podiam ser de sangue, de animais ou de
pessoas que, embora horrendos, eram feitos com naturalidade, e até sob certa
festividade, pelos cultuadores. O certo é que as religiões que vingaram até
nossos dias agora disputam o monopólio de ser as que cultuam o deus ou deuses
verdadeiros. Algumas religiões ainda possuem traços de seus rituais primitivos,
enquanto outras apenas reafirmam constantemente seus rituais e dogmas, embora
adaptando-os aos novos seguidores.
Moral, verdade e religião andam praticamente juntas e
caracterizam o tipo de pessoa que se é, ou seja, falam do caráter de cada ser
humano. Não é raro entre os homens comuns se acreditar que aquele que não se
comporta segundo a moral vigente, não prima pela verdade e o que não professa uma
religião é um ser humano sem caráter e perigoso para o bem-estar social. Assim,
essas três senhoras distintas são tidas como as aferidoras do tipo humano,
nesta ou naquela sociedade, nesta ou naquela época. Desta forma, moral, verdade
e religião são as novas deusas da humanidade, mesmo que aqui e ali se diversifiquem e até divirjam.
Embora muitas pessoas, dos últimos séculos para cá, tenham se rebelado contra
elas e questionado seus papeis como referência do tipo “bom homem”, há ainda
uma multidão de outras (a grande maioria) que as teem como verdadeiros ídolos.
É bem aqui que este trabalho põe seu foco e, tomando por
referência principalmente a obra do filósofo Friedrich W. Nietzsche, vai lançar
um outro olhar sobre esses “ídolos”, de forma a demonstrar como teem pés de
barros, que são vulneráveis a qualquer criteriosa investigação e que sua
fragilidade jaz na própria origem de cada um deles. A que se dizer também que o
intuito precípuo deste trabalho não é simplesmente desconstruir esses ídolos,
deixando escombros onde eram edificações aparentemente sólidas, e sim dar
destaque a novíssimos critérios de avaliação da humanidade que não se
estabeleçam por valores confirmadamente frágeis, que se estabeleceram, como já
foi dito acima, pela força da tradição e da autoridade.
Pois bem! Quando se utiliza da obra nietzscheana para
elencar argumentos contra valores, ideias e crenças fortificadas durante
séculos, é preciso que se saiba de antemão da dificílima tarefa que isso
representa e que se tenha um bom domínio de toda a sua filosofia, e não apenas
fragmentos dela. As ponderações, as máximas apresentadas por Nietzsche são tão
profundas que não nos deve tentar interpretá-las, isto é, usar abusivamente
nossas próprias palavras para transmiti-las. O perigo de deturpá-las é muito
grande e tentador. Isso não significa dizer que não possamos, nós mesmos, apresentar o
pensamento nietzscheano para os outros, significa que melhor será apresentá-lo
com suas próprias palavras, assegurando-nos de que aquele recorte não só convém
aos nossos interesses, mas também é fiel à integridade de sua obra. Para tanto,
é bom que tenhamos certeza que seu pensamento seja já reconhecido pelos outros.
Dentre as obras
que utilizo para tratar da temática proposta neste trabalho, uma das mais úteis
é Crepúsculo dos Ídolos ou Como filosofar
a marteladas (1888). Um livro ousado, como toda a obra de Nietzsche, que
não deixa pedra sobre pedra daquilo que ataca, por isso, “a marteladas”.
Podemos começar citando uma frase que cai como uma luva para este trabalho: “Há
mais ídolos que realidades neste mundo”. Dito isto, agora creio que podemos
caminhar juntos nessa tarefa de desconstrução.
Nietzsche tem por referência, como valor superior, a Vida, mas essa vida não é em favor do
homem – ela não está aí por causa dele, e sim o contrário: ele está aí por
causa dela. Então, a Vida é um valor por
si mesma. Por outro lado, a moral surge como um valor modelador do homem,
“domestificador do animal homem”, e nesse afã, ela se contrapõe à própria Vida, contra os
instintos trazidos pelo homem. Além disso, não existe apenas uma moral. A moral
foi tecida, aqui e ali, por forças dominantes, por classes, grupos, indivíduos
que estavam no poder. Assim, ela funciona em prol de quem está no poder,
subjuga os dominados de então e submete os que vêm depois pela força da tradição,
como se ela fosse um valor inato, válido em todos os tempos para todos os
povos. A moral dita as ações, diz o que se deve e o que não se deve fazer
dentro de uma sociedade. Desta forma, os homens fortes se vêm acorrentados por
códigos morais que, se não seguidos à risca, os transformam em marginais, a
escória da sociedade. Então Nietzsche dirá: “A moral anti-natural, isto é, toda moral ensinada, venerada e pregada até o
presente, se dirige, ao contrário, precisamente contra os instintos vitais – ela é uma condenação, ora secreta, ora
ruidosa e descarada desses instintos[4]”.
Com essa citação, muitos poderão perguntar: “Nietzsche
pretende então que os homens se mantenham no estágio selvagem? Vivendo quase
como animais?”. Então, vejamos! Embora a moralidade tenha sido instaurada há
muitos séculos nas sociedades da África às Américas, o que há de selvagem no
homem foi debelado? Toda a violência que se tem conhecimento de norte a sul e
de leste a oeste foi aplacada pela moral? O comportamento doentio, de ódio, de
traição, de mau-caratismo de um sem-número de pessoas, história adentro até os
dias de hoje, demonstra um declínio na animalidade humana? Alguém ousará
responder essas perguntas com um sincero e sonoro “Sim!”? A mordaça da moral
com os seus “Tu deves” e “Tu não deves” não passa de um artifício difundido
para a dominação de uns por parte de outros. A moral que até agora foi imposta
pretende igualar todos os homens, fracos e fortes, para a domestificação por
parte da classe ou dos indivíduos que estão e pretendem se manter no poder em
cada sociedade. Nas palavras de Nietzsche: “A fórmula geral que serve de base a
toda religião e a toda moral se exprime assim: “Faça isto ou aquilo, não faça
isto ou aquilo – então serás feliz! Caso contrário...” Toda moral, toda
religião não é senão esse imperativo
– eu o chamo o grande pecado hereditário da razão a imortal não-razão”.
[1]
Aquele que tem por prioridades ganhar o pão de cada dia, ter um emprego, uma
família, alguns bens básicos, sem se importar com as questões profundas,
filosóficas, que pairam sobre a vida.
[2]
Filósofo alemão, rotulado como “pessimista”, por apresentar em sua obra-prima,
“O Mundo como Vontade e Representação”, uma visão de mundo nua e crua, onde
toda a realidade é movida por uma vontade cega, sem objetivo racional, sem um
fim que agrade a razão e o coração dos seres humanos.
[3]
Termos retirados do latim.
[4]
Crepúsculo dos Ídolos, Cap. A Moral como Manifestação contra a Natureza.